segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Como era meu pai. Parte II.

Lembro também de brincar na garagem da fábrica onde a Cibéle e eu entrávamos nos carros importados do Mário e lá fazíamos muitas viagens imaginárias.
Tinha um Lancia, um TC da VW, um carrinho esporte vermelho, creio que um Masseratti.
Era uma festa  !
Tenho muitas lembranças da fábrica pois quando meu pai ia trabalhar de final de semana ele nos levava para lá.
Uma recordação especial foi quando chegou na esmaltação um grande forno - estufa, todo modernoso 
e que meu pai havia nos mostrado e explicado como funcionaria.
A Cibéle e eu resolvemos brincar dentro deste forno que estava desligado e era a nova aquisição 
da Petracco .
Sei que numa de nossas brincadeiras a Cibéle entrou dentro deste forno e eu fui abrir a porta .
Só que passei do limite da abertura e a grande dobradiça da porta se quebrou fazendo com que a porta viesse a cair. Fomos com muito medo avisar meu pai que entrou em desespero.
Ele apenas diz: "Como vou explicar isto ? O que vocês fizeram ? Como vou justificar a quebra desta imensa dobradiça ? "
Confesso que não sei o desdobrar desta estória e o que meu pai fez para justificar a quebra da porta. 
Ele nunca nos falou ! Talvez tenha sido descontado de seu salário. Mas nunca ficamos sabendo 
o final desta estória.
Meu pai era um homem generoso, gostava de ajudar as pessoas. Segundo relatos de minha mãe, 
ele fazia questão de ajudar a todos mesmo sem poder. Pelo que sei custeou os estudos do tio Pedro, financiou algumas coisas para os filhos da Tia Thereza e ajudava a pagar o tratamento de seus pais (meus avós que não conheci) e do irmão Gabriel que sofriam de hanseníase e que estavam internados em São João da Boa Vista. 

Como era meu pai.

O Gildo era uma pessoa muito rígida. Princípios italianos de verdadeiro patriarca. Era 15 anos mais velho que minha mãe e extremamente ciumento.
Era bravo e apanhávamos dele quando fazíamos coisas erradas.
Tomávamos a benção, beijando sua mão e ele era sempre o primeiro a ser servido na mesa.
O princípio moral era extremamente apurado e o senso de justiça me parece que era fundamental.


GILDO E SUA MOTO


GILDO E LOLA -  CASAMENTO 1955


Lembro bem que bastava um olhar dele para entendermos tudo o que ele reprovava ou o aviso para uma reprimenda. As palavras não eram necessárias.
Mas desde pequena eu lembro que eu o desafiava. Ele não suportava quando me dava uma bronca e eu não chorava e apenas fixava o meu olhar no olhar dele.
Aquilo o deixava "louco". Só lembro das palavras : "Não me olhe assim ...!" , "Fale...!", "Abaixe esses olhos ....!"
E quanto mais ele falava mais eu eu olhava e fazia bico, até que eu levava uns tapas .
Eu

Mas apesar desta rigidez ele era uma pessoa boa, alegre e contador de estórias. Fazia questão de 
nos ensinar muitas coisas e mostrar os caminhos que ele achava certo.
Fez questão de nos educar sob os conceitos católicos mas nunca nos obrigou a seguir a religião.
Estudei durante toda a vida em escola católica : "Colégio Cardeal Motta", de freiras e padres. 
Íamos as missas, respeitávamos os feriados religiosos e tudo o mais.
Também reservava para nós as diversões infantis. Gostava de fazer brincadeiras, de nos levar à passeios infantis. Todos os domingos pela manhã víamos o Festival Tom & Jerry no Cine Metro ou no Cine Roma. Também íamos ao cine Universo, na avenida Celso Garcia, que abria o teto depois que terminavam as sessões.
Gostava de viajar para o interior de São Paulo e pescar .
Também nos levava para assistir óperas no Teatro Municipal ou criar sessões de músicas aos domingos em nossa sala com a vitrola grande. Ele fazia a gente perceber o som estereofônico que transitava de uma caixa para a outra e enchia a sala com a passagem dos instrumentos, numa grande linha de produção
Era um trabalhador exemplar. Dedicava a sua vida à fábrica "Petracco & Nicolli. No meio das enchentes ele corria para lá para salvar as chapas de aço e todo o material que pudesse ficar exposto a fúria das águas.
Chegava a passar a noite salvando os tambores, fornos e estufas . Ele trabalhou na Petracco por mais de 40 anos. Começou bem mocinho e lá ficou até os seus 58 anos, morrendo literalmente lá dentro.
A fábrica fazia parte de nossas vidas de maneira visceral .
Os donos eram italianos e muitos de seus funcionários-diretores eram descendentes de italianos .
Lembro que nas salas da diretoria haviam muitos retratos de Mussolini, de locais e mapas da Itália.
O dono era o Sr. Petracco que os funcionários meio que veneravam. Com o seu falecimento assumiu Mário Nicolli que, segundo contavam os moradores do Cambuci, era um playboy que adorava festas , carros e farras . Quando jovens, meu pai fazia parte desta turma. Viajavam, saiam e bebiam muito.
Mário assumiu o comando da fábrica e colocou nos cargos diretivos membros de sua turma.
Gildo Pedrazzini como diretor comercial e de compras, além do sr. Odoni, Facchini, Miguel 
e outros.
A fábrica cresceu e prosperou pois fornecia placas de automóveis para todo o Brasil, bem como placas de ruas e estradas. Também faziam muitas outras coisas, como chaveiros, troféus, número para casas, emblemas de carros, placas comemorativas e tudo que se relacionava com aço e metal.
Lembro bem quando lançaram as películas reflexivas que eram usadas nas placas dos automóveis. Aquilo foi uma sensação !
Meu pai nos explicava cada detalhe da produção. Elas eram feitas com minúsculas esferas de vidro 
e quando batia a luz dos faróis elas se acendiam durante a noite. Lumiflex !
Inclusive meu pai teve um problema sério no olho, pois ao raspar uma destas películas, estas microesferas foram para seus olhos provocando uma lesão. Isto custou uma bom tempo de tratamento 
e uso de um tapa -olho.
Sei que todas as habilidades que tenho hoje para lidar com elétrica, hidráulica e pequenos consertos , vieram dos ensinamentos do meu pai.
Ele fazia questão de nos ensinar várias coisas.
No caso das placas, ele nos levava na fábrica para nos mostrar como eram feitas as coisas .
As placas de aço eram cortadas em grandes máquinas guilhotinas, depois prensadas numa grande linha de produção com os números e nomes de cidades, depois passavam por uma sessão de pintura com grandes máquinas onde se colocavam as cores: amarela para os carros comum, vermelha para os táxis, branca para os carros de emergência e preta para os carros oficiais. Depois passavam por lugares com água e após este processo iam para a aplicação das películas reflexivas. Eram cortados os moldes,
uma máquina colava as películas e depois iam para grandes estufas com muitas lâmpadas potentes e
 lá ficavam para a adesão.
Para nós, com a visão infantil, aquilo era de uma grandiosidade mágica!
Depois nos levava para outro lugar na fábrica que era a esmaltação. Lá havia muitas mesas com pequenos e infinitos objetos que eram pintados com milhões de cores e milhares de pincéis de todos os tamanhos.
Nesta sessão eram feitos os chaveiros, medalhas comemorativas, brasões e distintivos.
As pequenas peças eram coloridas por centenas de mãos habilidosas e artísticas como a da Maria,
uma mulher negra, simpática que nos colocava ao seu lado para ajudar a pintar as peças.
Tenho até hoje umas bailarinas que foram pintadas por nós com auxílio da Maria .
Depois de pintadas, estas peças eram colocadas em grandes bandejas e depois iam para grandes fornos, estufas para fixar a esmaltação.
Quando prontas iam para a sessão de contagem com muitas correntes, argolas e pequenas ferramentas para a finalização .
A fábrica para nós era um grande playground da aprendizagem .
Tenho uma cicatriz na parte posterior da minha perna, provocada por uma descida estratégica 
de um banco alto, onde eu escrevia numa lousa atrás da mesa de meu pai. Abaixo haviam escaninhos com mostruários de chapas de aço de diversas espessuras .
Ao descer do banco, rasguei minha perna numa destas chapas e meu pai imediatamente encheu 
meu corte com sulfa e fez um grande curativo.


Sr. Odoni e meu pai sentado. Atrás desta mesa haviam os escaninhos
onde me machuquei .


                                                    Continua na próxima postagem...



                                           

domingo, 13 de novembro de 2016

Os medos de infância.


Como enumerar os vários medos e explicá-los ? Os terrores infantis são complicados. Hoje me pergunto o que o imaginário infantil cria de tão aterrorizante? O que traz estes temores? Estórias? Educação? Perdas? Desconhecido? Não saberia responder mas algumas coisas me provocavam terror.
Parque Changai
                                                 


Como já relatei, o homem do saco  a Bruxa do Parque Shangai, o boneco das Pernambucanas e alguns muito reais.
Em alguns finais de semana meu pai me levava na casa da tia Thereza e do tio Juca no Ipiranga, na rua Gama Lobo. Eu gostava de ir lá pois além do quintal onde a Célia minha prima criava muitas brincadeiras, ela me dava panelinhas e fazíamos comidas para as bonecas com terra e grama . Outra coisa era a coleção de gibis do Pato Donald e do Tio Patinhas. A Célia deixava eu abrir o armário que ficava próximo à porta de entrada para folhear os inúmeros gibis. Ela tinha o exemplar número 1 do Tio Patinhas e eu adorava. Era bom enquanto meu pai estava por perto. Quando ele ia embora eu ficava bem por uns tempos, mas na hora de ir para a cama começava o meu desespero. Sei que no meio da noite eu pedia para ir para minha casa e terminava em choro que ninguém mais dormia. Tio Juca ligava para meu pai e ele vinha de madrugada de táxi me buscar.
Creio que o fato de estar longe de casa me dava muita insegurança.
Outro fato marcante foi quando fomos a uma quermesse no Colégio Nossa Senhora da Glória, no próprio bairro. A quermesse era ótima, tinha muitas barracas, muitas brincadeiras, prendas, bingos e guloseimas. Num determinado momento da noite meu pai saiu para comprar cigarros e nos deixou, mamãe e eu, esperando num ponto da festa. Mas na minha cabeça aquela espera era uma eternidade e meu pai não voltava. De repente, aquele monte de gente, os guardas que rondavam pela festa começou a tomar um vulto de terror.
Tudo era amedrontador e segundo minha mãe  eu abria uma sinfonia do tipo: "Eu quero meu pai , eu quero meu pai..."  e terminava em choro e soluço.
Minha mãe tinha vergonha, pois as pessoas paravam para ver o que estava acontecendo e o meu medo  cresceu quando dois policiais se aproximaram de nós e vieram perguntar se estava acontecendo algo.
Aquelas duas figuras na minha frente pareciam dois monstros gigantescos e pensei que eles tinham prendido meu pai e o choro virou berreiro. Mas logo avistei meu pai vindo assustado e apressado para ver o que tinha acontecido. Só lembro que ele me pegou no colo me xingando e dando bronca e eu ainda soluçando. Mas mesmo as broncas naquele momento me davam conforto.
Outros episódios como este se sucediam.
Lembro que em todas as férias de verão o tio Josino e a Yayá alugavam apartamento na praia, onde ficávamos durante o mês e meu pai vinha nos finais de semana.
Todos os anos ficávamos em praias diferentes: São Vicente em Santos, Guarujá, Cibratel ou Suarão na Praia Grande. Geralmente o Alemão, nosso primo e filho do tio Samuel, passava as férias com a gente pois a Yayá era madrinha dele. Nos dias da semana a Yayá e minha mãe faziam a feira e eu cismava de ir junto, às vezes embaixo de chuva.
As duas brigavam comigo, eu tomava beliscões da Lola e falavam que a Cibéle e o Alemão ficavam quietinhos e eram obedientes.



Eu, Alemão e Cibéle no Guarujá



Mas eu tanto fazia que acabava indo junto, mesmo debaixo de chuva, com capa e galocha, e acabava conseguindo.
No fundo, eu acho que tinha muita insegurança em ficar sem meu pai e minha mãe e ter que ficar com os tios que longe deles falavam coisas que eu não gostava.
O tio Josino me chamava de rabugenta e tinhosa.
Certa vez ficamos num apartamento do amigo do tio Josino chamado Jacob. Ficava em Cibratel II .
O Gildo vinha somente aos sábados e domingos e naquela semana havia acontecido um temporal junto com vento noroeste. Foi muito violento e arrasou muitas coisas. Naquela época as praias do litoral sul eram muito precárias e não eram tão povoadas. Eram poucos prédios baixos e muita mata atlântica ao redor.
Neste temporal, as águas levaram muitas coisas e o mar avançou até as calçadas . Podíamos ver as
estruturas do nosso prédio. Aparentes como se abrissem um grande fosso ao redor do edifício.Ficamos ilhados pois as calçadas haviam sido arrancadas.
No dia seguinte, o zelador havia improvisado umas madeiras que serviram de ponte para podermos atravessar para o outro lado da rua.
Depois do dilúvio, a Yayá , a Lola, a Cibéle, o Alemão e eu saímos para ver os estragos e catar conchas.
No meio da caminhada a Yayá caiu numa areia movediça e não conseguíamos tirá-la. Vi o desespero de minha mãe tentando puxá-la e cada vez que ela se movia mais afundava.
O Alemão foi atrás de um pau de vassoura e pedaços de madeira . Nisso chegaram dois caiçaras que ajudaram a puxá-la. Só sei que ela acabou perdendo um anel e a bolinha de palha dela. Mas saiu ilesa com lama e areia até os peitos.
Com a chegada do meu pai no final de semana, tudo ficou difícil pois ele não tinha como se aproximar com a Kombi da fábrica . Lembro dele ter ficado horrorizado e preocupado se o prédio não teria perigo de ruir.
Aquilo me assustou muito e queria que ele chegasse logo. Só via o zelador rodeando o prédio e analisando a situação.







A mudança. Continuação.

Kátia me acompanhou por muito tempo. Em todas as minhas brincadeiras e atividades ela estava presente. Motivo este que fez a minha mãe acreditar que eu estava "louquinha", querendo me levar ao médico ou psiquiatra.
Eu obrigava a minha mãe colocar um prato e talheres na mesa e ter uma cadeira ao meu lado,
onde Kátia se sentava.
Ou era um anjo ou era realmente um ser criado pelo meu imaginário.
Até hoje tenho em minha mente a Kátia . Lembro-me perfeitamente como era ela . E se um dia eu 
a encontrar na rua sou capaz de ter uma síncope.
Pouca coisa me recordo da mudança em si. Talvez meus pais tenham me deixado com alguém pois nada me vem à lembrança, como o transporte dos móveis, roupas, entrega da casa velha, etc. Só me lembro já dentro do apartamento novo com os nossos móveis, a famosa estante de livros, a vitrola de meu pai com sua coleção de discos e eu grudada com a minha boneca Belinda , inseparável e que eu a conservo até hoje.
A Cibéle, minha companheira  de travessuras e manipulações, era tranquila. Lembro que combinávamos coisas para aprontar e descobrir e desvencilhar das coisas proibidas pelo pai.
A Cibéle era sonâmbula e minha mãe amarrou todas as janelas do apartamento com arames para não ter perigo quando ela levantasse de madrugada e se aproximasse com banquinhos para "ver dormindo "o que acontecia na rua.
Nosso prédio tinha três andares e morávamos no último andar . Apto 11. A Cibéle levantava e andava pela casa como se estivesse fazendo coisas. O apartamento tinha dois quartos e nós dormíamos juntas, 
num deles.
Uma noite a vi levantando. Foi ao banheiro, pegou um banquinho, aproximo-se da janela e lá ficou . Lembro de ter chamado minha mãe e meu pai e os dois foram pé ante pé atrás dela , sem despertá-la , apanhá-la no colo e colocá-la de volta na cama.
Minha mãe me orientava para não assustá-la nem acordá-la pois num susto ela poderia morrer. Aquilo me assustava profundamente e tinha muito medo quando eu via isto acontecer, por isso eu corria para o quarto deles e os chamava com muito medo de acordá-la.

A mudança.

Não sei precisar exatamente o dia e a data em que saímos da casa velha para nos mudarmos para o prédio construído pelo Mário Nicolli, mas lembro dos fatos que marcaram esse acontecimento.
Creio que eu tinha uns 6 anos pois a partir daí tudo que lembro, como escola, amiga imaginária, etc., veio a partir da mudança.
Uma das coisas que marcaram muito foi a entrega e a perda do Dick.
Ele era um cachorro bonito, valente e fiel.
Meus pais contavam que uma vez o Dick desapareceu, todos em casa foram atrás dele e nada ! Espalharam a notícia pela vizinhança, avisando aos amigos a ficarem atentos caso avistassem o nosso Dick. Desconfiavam que havia sido roubado de nosso quintal, na frente da casa, pois ele não saia 
na rua, até por ser considerado um cachorro bravo.
Em frente a nossa casa velha havia uma transportadora e muitos caminhões paravam por ali,
vindos de muitos lugares. Meu pai achava que algum caminhoneiro o havia atraído com carne 
e o levado com a carga.
Depois de dois dias do desaparecimento,  para a surpresa de todo mundo, Dick retornara todo sujo com as patas ensanguentadas e inchadas e muito cansado.
Meu pai deu um banho nele, passou remédio em seus ferimentos, deu-lhe água e leite e conta que ele  dormiu por quase duas noites e dois dias seguidos sem se quer levantar.
Depoios disso ele foi se recuperando e voltando ao normal .
Meus pais disseram que ele devia ter vindo de muito longe pelo estado em que ele chegou em casa.
Minha mãe conta que eu havia ficado doente e com febre com a falta do Dick.
Mas o preparo para a mudança significava a perda definitiva do meu companheiro, pois no apartamento animais eram proibidos.

Lembro que foi num final de semana . Creio que era um sábado.
Papai me preparou para sairmos com o Dick e irmos até o Corpo de Bombeiros que era bem próximo de casa .
Andamos pelas ruas com ele e chegamos à corporação onde alguns bombeiros nos receberam.
Sentamos numa mesa sob uma enorme árvore, o Dick deitado ao lado de meu pai e ele conversava com o homem.
Eu estava meio fascinada com aqueles caminhões enormes e saber que estava entre aqueles homens heróis que salvavam pessoas nas enchentes, nos levavam pão e leite quando as águas permaneciam 
por longos e intermináveis dias e, além do mais, combatiam o fogo. Fiquei ali, sentada no banco, olhando para tudo aquilo com um certo encantamento e imaginação.
Com certeza toda aquela conversa provocada pelo meu pai era para o Dick ir se familiarizando
com a pessoa e com o local.
Num dado momento, o bombeiro me perguntou se eu queria subir no caminhão e tocar a sirene.
Ele se levantou, pegou na minha mão, pegou a coleira do Dick e fomos ao caminhão. Entrei na cabine ajudada por ele e sentei-me frente à direção.  O Dick pulou junto e ficou entre nós. O meu pai permaneceu no banco. O bombeiro me explicou cada peça do caminhão e o que mais me interessava naquele momento era tocar a famosa sirene.
O bombeiro então guiou minha mão para que eu acionasse o botão. Fiquei fascinada com aquilo.
A única frase que me lembro do homem ter me dito era que o Dick seria um bombeiro.
Quando descemos do caminhão corri ao encontro de meu pai com encantamento e não lembro mais
do que aconteceu. Saímos com o Dick e não sei dizer - nem meu pai me contou - qual foi a minha reação: se chorei, se fiz perguntas. Só sei que Dick não nos acompanhou na volta.
Creio que a minha mente, por defesa, não quis registrar os fatos posteriores pois não consigo me lembrar de mais nada.
O segundo desapego foi o meu urso azul sujo. Vivia com ele para todos os lugares e me dava desespero quando mamãe o pegava escondido para lavar e o via pendurado e esticado no varal alto, fora de meu alcance para salvá-lo e resgatá-lo.
Mas lembro que em nossos primeiros dias no apartamento novo, mamãe me levou ao corredor e me mostrou um "coletor de lixo".
Era uma porta branca e quando aberta era um enorme buraco sem fim.
Também não me recordo da conversa que minha mãe teve para me convencer a levar meu urso para aquele buraco negro.
Provavelmente alguma estória fantasiosa tipo "Alice no País das Maravilhas "onde meu urso iria se encontrar com os amigos e lá ficar para nunca mais voltar .
Só lembro do fato de ter pego meu urso pelos braços e junto com mamãe , abrindo aquela porta mágica , arremessá-lo para aquele mundo sem volta.
Penso que psicologicamente , para compensar todas estas perdas é que surgiu minha amiga imaginária : "Kátia". Loira de olhos azuis , com largas tranças douradas caídas nos ombros e vestida de blusa branca e um aventalzinho azul claro.( Continua ...... )



    Parque Shangai




sexta-feira, 27 de maio de 2016

Avó Esther e a sabedoria da cura.



Vovó Esther tinha residência em Mogi das Cruzes mas morou em nossa casa por uns tempos e de vez em quando se revezava na casa dos filhos para ajudar com as crianças. A Vó foi parteira de quase todos os netos. Somente não pegou os últimos e os da tia Dirce, que tinha 
Vovó Esther, mamãe, Cibéle e eu ....
mais posses. Era filha de portugueses e casada com um alemão do qual ficou viúva muito cedo. Em Mogi todos a conheciam e a respeitavam pois a chamavam para fazer partos e curar doentes com suas ervas. Era uma exímia conhecedora das plantas que curavam e fazia seus emplastos, chás 
e comidas fortalecedoras da saúde. O pouco conhecimento que tenho sobre isto foi herdado dela e até hoje ainda preservo o uso de algumas ervas.  
Mogi das Cruzes- Casarão da avó Esther- Vista parcial

Uma vez por ano ela fazia uma fila com todas as crianças da família, dava um pregador de roupas 
a cada uma para colocarmos no nariz e "entuxava" uma colher de óleo de rícino para tirar a verminose.
Todo mês ela dava emulsão Scott, um vidrinho com rótulo azul com a figura de um pescador carregando uma vara nas costas com um grande peixe pendurado. Era óleo de fígado de bacalhau. Só a visão do vidrinho era suficiente para me fazer esconder atrás do sofá ou dentro da banheira. 
Avó Esther era uma figura doce e meiga apesar de ser teimosa e turrona, mas tinha o poder do convencimento entremeado com suas histórias de castelos e princesas.
Lembro bem de que quando era preciso dar as suas "poções de saúde", ela sempre justificava o gosto ruim com lindas estórias e nos convencia com ilusões e promessas que nos tornaríamos tão fascinantes como aquelas personagens.
Por exemplo, ela sempre nos dava um pozinho chamado ruibarbo e dizia que aquilo era uma maquiagem. Falava que as princesas, ao invés de usarem "rouge", tomavam aquilo para terem suas faces coradas naturalmente.
Outro fortificante que nos dava (mas este era gostoso) vinha acompanhado da estória dos índios. 
Ela pegava um tronquinho de guaraná, desbastava com um pequeno ralador e misturava o pó que 
se formara com água e um pouquinho de açúcar. Depois disso, colocava as frutas meticulosamente sobre a mesa e dizia que aqueles "olhinhos" da fruta iriam nos observar até tomarmos o último gole. Para coroar a ação, arrematava falando que os índios nunca ficavam doentes pois todas as manhãs tomavam a mesma coisa e aqueles "olhos" faziam com que tivessem uma visão aguçadíssima para
caçar e enxergar bem longe. 


Fruto do guaraná


Quando tínhamos uma gripe muito forte ela preparava.. uma garrafada. Ia até Mogi para pegar 
ovos de pata e mentruz de sua horta medicinal. Ela batia no liquidificador os ovos, a mentruz, 
Biotônico Fontoura  e leite condensado. Isto era dado às colheradas durante o dia. 
À noite ela preparava uma canja forte, feita com muitos pés de galinha, pois  dizia que nos pés das galinhas existia uma gelatina que fazia nossa pele ficar bem lisinha e sem rugas. Quando a canja ficava pronta nos sentávamos à mesa e meu pai enchia uma concha com vinho tinto e colocava a medida em cada um dos pratos, pois era fortificante.
Sem contar as gemadas matinais que eram preparadas cuidadosamente com uma gema batida com açúcar, canela e uma taça de vinho do Porto. Dizia que o segredo da gemada era bater muito as gemas com o açúcar até ficarem bem branquinhas, só depois acrescentava-se os ingredientes e de vez em quando ela colocava umas casquinhas de limão raladas.
Quando tivemos "coqueluche" (tosse comprida), ela nos agasalhava bastante, com gorro e luvas e íamos a pé da casa da velha até o outro lado da Avenida do Estado, pelos lados do Gasômetro, onde tinha um reservatório de gás. No pátio havia uma estrutura metálica redonda imensa, cujo centro se movimentava para baixo, como um grande pistão e conforme ele abaixava o cheiro de gás se espalhava no quarteirão. Segundo a vó, respirar aquele cheiro de gás por um tempo, curava a coqueluche. Havia muitas crianças por lá com bronquite e outras doenças respiratórias. 
Antigo Gasômetro, entre o Cambuci e o Brás


Até hoje não compreendo a ligação científica/ intuitiva disto, mas sei que a nossa tosse comprida fora curada.
Uma vez por semana éramos obrigadas a comer bife de fígado. Intragável até hoje , para mim. 
Mas tínhamos que comer, disfarçado com tomates, cebolas ou embutido em alguma outra comida . Quando tínhamos febre ela colocava cebolas em rodelas grandes e amarrava com lenço em nossos pés depois de banhá-los em uma bacia com água quente e sal. 
Para dor de cabeça e também para a febre ela fazia uma bandana com várias rodelas de batata e colocava em nossas testas e na fronte.
O famoso chá de "cipó cruz "que até hoje tomo e que cura as minhas enxaquecas, era um depurador do fígado e do estômago . Amargo mais que fel , ruim demais , mas um santo remédio. 
Quando íamos para Mogi na sua hortinha medicinal, ela nos dizia que as mesmas ervas que curam também podem matar.  
Ela frisava muito a diferença na colheita da erva  "cipó cruz ",pois era facilmente confundida com a cicuta e nascem muito próximas umas das  outras.
Pena eu não ter escrito ou registrado todo este conhecimento empírico de minha vó. Era uma grande conhecedora da medicina e da cosmética natural. Ela, particularmente, nunca usava remédios. Quando tinha que tomar algum medicamento prescrito pelos médicos e obrigada pelas filhas, ela ficava furiosa. Fazia de conta que tomava e mamãe ou Yayá encontravam todos os comprimidos em seus bolsos das roupas. 
Ela guardava todas as cascas de frutas e legumes e muitas vezes pela manhã encontrávamos a vó com todas estas cascas no rosto. 
Um dia era mamão, no outro pepino e assim ia ....
Quando as crianças nasciam ela fazia uma pasta com clara de ovo e passava nas cabecinhas dos recém nascidos e colocava uma touca apertada. Dizia que aquilo era para deixar a cabeça bem redondinha e não com aquela cabeça chata de "nordestino".
Ela sabia exatamente os alimentos que lhe faziam mal.Ela tinha bronquite  e reumatismo. Dizia que quando chupava laranja lima aquilo lhe provocava as dores do reumatismo ou quando tomava muito leite sua bronquite atacava. 
O único remédio que ela tomava era o famoso Beserol que tirava as suas dores reumáticas.
Mas só aceitava tomá-lo quando a dor era insuportável.
Minha avó não tinha varizes nas pernas e sua pele era muito lisa e macia como um pêssego.
Sei que esta sabedoria curava muita gente e sinto ter perdido este conhecimento. 



quinta-feira, 26 de maio de 2016

Mais sobre as festas.


O Natal e Final de Ano também tinham seus rituais e costumes.
Lembro que sentava com minha mãe umas semanas antes para escrever a cartinha do Papai Noel. 
Às vezes ela escrevia e eu copiava e lembro que, talvez pensando em nosso futuro, ela sempre orientava para pedirmos uma jóia. Escrevíamos e colocávamos sob a árvore que era montada na sala.                                             
A cartinha para o Papai Noel


Na véspera do Natal, que  geralmente passávamos na casa da Yayá ou em casa, papai ia ao Mercadão Municipal para as compras.
Lembro que eu ficava encantada ao ver aqueles barris com azeitonas enormes. Eu sempre amei azeitonas ! Aquele colorido me fascinava. Olhava aqueles queijos imensos e imediatamente me lembrava de Tom e Jerry. As frutas coloriam meus olhos. Em todos os boxes que parávamos eu recebia um pedaço de queijo ou salame para degustar.
Meu pai levava duas sacolas de feira as quais voltavam cheias. Lembro bem das compras. 
Papai comprava azeitonas verdes e pretas, um pedaço grande de queijo cheio de furos e aliche. 
Depois íamos nas frutas secas e ele comprava ameixa, uva passa, nozes e castanhas e na sequência 
era a hora das frutas frescas: pêssegos, uvas e ameixas . 
Tomávamos o ônibus, voltávamos e entregávamos para mamãe. Lembro do cheiro do Natal. 
O ar era carregado de um cheiro  próprio da época e quando íamos para a casa da Yayá também havia um cheiro especial de assados e doces. 
Na casa da Yayá, onde se reunia toda a família, a surpresa era quando o tio Josino abria a grande cesta de Natal, feita de vime e lotada de produtos especiais que só comíamos nesta época. Mas a surpresa maior era achar dentro da cesta, no meio das palhas , o "boneco Amaral " que a cada ano pertencia a alguém. O Sandro tinha um grandão. Às vezes ele vinha pequeno, outras ele era grande. O boneco Amaral era um tipo de gigante , eu acho, sem camisa e musculoso com calça azul e careca.
Creio que era o mascote das "Lojas Amaral ", se é que existia esta loja. Era muito gostoso tudo isto !!!!
Depois da ceia íamos para casa dormir e colocar o sapatinho novo na porta do quarto para que no dia 25 achássemos o presente entregue pelo Papai Noel . 
A expectativa mal nos deixava dormir. A nossa ansiedade era acordar muito cedo e abrir a porta do quarto. No meu imaginário, ficava instigada como o Papai Noel entrava em casa pois não tínhamos chaminé. Eu acreditava que ele entrava pela chaminé da fábrica e depois caminhava pelos telhados até a casa velha. Mas nossos pedidos sempre foram atendidos, senão em sua totalidade mas o pedido maior sempre estava lá. Depois de brincar com os presentes voltávamos para a Yayá para o almoço. 
O Final de Ano era em casa e Yayá trazia seus quitutes e um peixe enorme.... Toda a alegria se repetia 
e esperávamos mas uma virada ......

Chaminé da fábrica Petracco & Nicolli
(que para mim era a entrada do Papai Noel)


Os pequenos passeios e preparativos festivos.

Minha mãe, eu  e  a gaita na porta da
Dona Mariquinha, onde vivia o galo.

Para estas festas pudessem acontecer lembro que tinha uma movimentação diferente e uma espécie de divisão de tarefas. Fosse em casa ou na Yayá.
Ao meu pai cabiam as compras. Algumas datas eram tradicionais e ficaram muito marcadas: a Páscoa,  o Dia das Crianças, o Natal e o Fim de Ano.

Nos dias que antecediam os eventos, havia uma espécie de peregrinação. Eram preparos e tradições que se mantiveram por muito tempo. De minha parte lembro que havia uma grande expectativa e euforia pois tinha um significado e um gosto de coisas diferentes, mesmo se repetindo a cada ano. 

Não sei como faziam com o dinheiro. Os recursos eram escassos e lembro que tudo era muito controlado. Mas me parece que guardavam o pouco que tinham para manterem estas datas vivas.
Acho que se programavam durante um ano todo para poderem cumprir esta espécie de dever . 
Digo isto pois tudo que eu tinha era coroado de um grande valor e sentia que envolvia um esforço descomunal por parte de meus pais nestas pequenas conquistas. Havia uma espera ansiosa, por exemplo, por um sapatinho novo. Era gosto de grande acontecimento. Íamos a pé do Cambuci até a Rua da Moóca, numa fábrica de sapatos que meu pai conhecia. Experimentava o sapato escolhido e lembro que a caixa era trazida por mim e pela minha irmã como um grande tesouro ou uma jóia. 

Lembro-me até de uma passagem, com a gente um pouco mais crescida. Numa destas saídas para a compra dos sapatinhos do ano, meu pai recomendava : "Não precisam dizer para as pessoas o que fomos fazer e o que fomos comprar . Não interessa para elas ". Geralmente isto acontecia aos sábados e como íamos a pé,  na volta descíamos pela Rua dos Alpes e encontrávamos todos os vizinhos. E na volta, carregando nossos tesouros, a Cibéle com sua caixinha na mão e eu com a minha , passamos na frente de uma barzinho que vendia de tudo e muitos se reuniam ao sábado perto da hora do almoço , quando um amigo de meu pai nos abordou e se dirigiu à Cibéle e disse :  "- Ah, ganhou sapato novo , não é ....? " e a Cibéle, na maior ingenuidade, com a típica caixa de sapatos, virou para ele e disse :  
"- Não, não é sapato novo .... é pão !!! "
Aquilo provocou uma gargalhada geral no barzinho e lembro apenas de meu pai meio sem graça,
se despedindo de todos e nos tirando dali para voltarmos para casa e curtir nossa aquisição !!!!

Na época da Páscoa também tínhamos um ritual. No sábado anterior saia com meu pai para comprar vários ovos de chocolate. Íamos a um lugar que não sei descrever onde era, mas meu pai escolhia 
ovos de vários tamanhos e colocava numa caixa . Talvez fosse uma fábrica de doces ou um distribuidor.
No sábado de Aleluia, íamos a Rua Lavapés ver a malhação do Judas que era muito tradicional 
e passávamos no Peg Pag para comprar os faltantes.  No domingo de Páscoa , enquanto minha mãe preparava o almoço , saíamos com meu pai para distribuir os presentes. Lembro que levantávamos cedo e íamos passando pelas casas. Íamos no tio Aristides, depois passávamos na casa da tia Thereza 
e do tio Juca, no meu padrinho, na Yayá e outras casas de parentes .Voltávamos para casa, almoçávamos e corríamos para abrir os nossos . Ficava fascinada e curiosa para abrir as duas partes e saber que surpresa vinha escondida dentro daquela guloseima. Só podíamos abrir os ovos depois do almoço. 

No Dia das Crianças podíamos pedir um único presente e a maior diversão era quando meu pai nos levava ao 'Salão da Criança", uma feira com todos produtos infantis e voltávamos carregadas de brindes.  Os que mais gostávamos eram as miniaturas de produtos como a lata de leite Ninho, lata de leite condensados, de sabão em pó, pois brincávamos na "copinha"e guardávamos nos pequenos armários. 

Também ganhávamos livros tridimensionais. Lembro de um particularmente , onde a casa da Branca 
de Neve era composta de vários produtos Arno ou Walita , não lembro bem.... 
Mas era uma cartolina dura que quando aberta os personagens saltavam e cada anão tinha um produto : uma enceradeira, um liquidificador, uma batedeira, etc... e podíamos mudar os objetos de lugar . Era o máximo . Guardei isto por muito tempo. Creio que até o inicio da adolescência . 

sábado, 21 de maio de 2016

As festas.


Muitas coisas aconteceram na "casa velha". Uma movimentação comum eram as festas. 
Algumas que lembro bem, outras que me foram contadas para avivar a memória e outras revividas através de fotografias.
Os aniversários de minha irmã e o meu eram temáticos. Lembro que minha mãe e minha avó começavam os preparativos quase uma semana antes. O meu primeiro aniversário foi uma festa memorável . Como  nasci no dia de São Pedro, último dia das Festas Juninas, toda a comemoração
foi com este tema .
Minha mãe fez um bolo na forma de um balão. Meu pai, com todas as habilidades que tinha, montou a estrutura para o bolo ser encaixado. Na mesa tinham todos os aparatos feitos pelo meu pai: a fogueira, as bandeirinhas, bonequinhos dançando quadrilha. Tudo feito por ele.
Meu pai contratou um sanfoneiro e a casa ficou cheia. Parentes, vizinhos e amigos. O quintal de frente também fora preparado e era quase uma extensão da rua . Lá fora o quarteirão também havia sido fechado.
Lembro pouca coisa desta festa mas alguns quadros tomam vida em minha mente. Outros são avivados pelas fotografias tiradas pelo meu pai, pois ele também era fotógrafo de corridas de motocicletas e tinha todos o material para isto: tripé , máquinas fotográficas , lentes e filtros ( guardo até hoje).

Uma cena viva é a do sanfoneiro.
As imagens trazem a figura dele sentado no sofá que fora colocado no quintal frontal e eu dançando na frente do músico conforme as canções ecoavam no burburinho. Lembro de meus padrinhos, dos meus tios e da Yayá e do Josino . E também do tio Pedro que fazia aniversário no mesmo dia que o meu .
A tia Yayá era figura constante pois era uma excelente quituteira e ajudava a minha mãe. Além do que a YaYá adorava festas . Seu marido, o tio Josino, era militar e enfermeiro . Trabalhava nesta profissão dentro do Jockey Clube de São Paulo.
Participou da Revolução de 32 e em todo 7 de setembro se paramentava, arrumava os poucos fios de sua careca com "Glostora "e se banhava com "Água de Cheiro ". Esta cena se repetiu muito , até a minha adolescência .
Dizem que foi a melhor festa da rua.
Depois veio o aniversário de minha irmã . Dia 08 de julho . O tema foi o campo e minha mãe preparou um bolo em forma de "carrocinha "puxada por um cavalo (que serviu de brinquedo por muito tempo).
Lembro que dentro da carrocinha haviam maçãs reluzentes e uma bonequinha vestida de camponesa puxando a cordinha do burrinho.
Na mesa, flores e árvores enfeitavam o entorno.
Outras festas como casamentos, natais e finais de anos eram feitos no apto da Yayá na Vila Mariana. Além de alguns almoços de domingo que eram deleitados e saboreados com quitutes que só comíamos nestas ocasiões 
Estas tradições marcaram muito a minha vida pois havia um respeito, um compartilhamento .
Lembro que nos almoços de domingo, tanto em casa  como na Yayá , ninguém comia antes de todos estarem presentes. Só sentávamos à mesa quando meu pai ou meu tio se serviam e aí era o sinal para avançarmos
Quando a família foi crescendo, pelo menos na casa da Yayá, era montada uma mesa só para as crianças. Todos os primos se sentavam , rindo, brincando e se deliciando com as iguarias preparadas.
O Sandro, o primo mais velho, sempre fazia brincadeiras que fascinavam os mais novos. Tinha uma preparação como se fosse um show.
Às vezes ele armava uns lençóis e todos ficavam embaixo, no quarto da YaYá e do Josino. Todas as luzes eram apagadas, as janelas fechadas e ele contava histórias de terror. Outras vezes o show era pirotécnico. Lembro que ele ficava de ponta cabeça, com calças de jeans. Num determinado momento, ele pegava um isqueiro e punha fogo em sua bunda, provocado pelos numerosos "puns"do almoço deglutido.
Mas era tudo uma grande diversão. E muitas outras brincadeiras aconteciam como o "passa anel ", "corre cotia na casa da tia ", canções e "esconde e esconde ".
Apesar das dificuldades e o dinheiro escasso que tínhamos durante as semanas, os domingos sempre eram alegres e esperados .
Os tios bebiam vinho de um grande garrafão que vinha de Andrada. Lembro que meu pai colocava o garrafão sobre os ombros e entornava nos copos vazios. Tio Josino só gostava de whisky que, segundo dizem, ele ganhava no JocKey Club os importados e guardava as garrafas para serem preenchidas com whisky nacional.
Estes encontros familiares e as datas tradicionais das festas se repetiram por muitos e muitos anos e foram preservadas enquanto estas pessoas viveram e perpetuadas enquanto valores internos .

Tio Zé, tio Aristide, Zé Carlos e o Sandro comigo .....em nossas viagens pelo interior...


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As enchentes do Tamanduateí.

Desde que me lembro convivi coma as enchentes do Tamanduatei. Nas épocas de chuvas lembro que todas as casas colocavam comportas de madeira em suas entradas. Inclusive na minha. Todos os móveis eram suspensos e a casa se transformava.
Era uma correria pois as águas subiam rapidamente. Meu pai também tinha uma preocupação enorme com a fábrica.
Os bombeiros ficavam a postos para socorrer e ajudar em todos tipos de ocorrências. Os vizinhos se ajudavam e estocavam alimentos pois não se sabia quantos dias iriam durar as águas.
Quando começava a vazão, lembro de todo mundo com botas de borracha, lavando as calçadas.
As fábricas usavam bombas para puxar a água do interior. Era como se fosse uma grande faxina pois ficava muita lama.
Não sei com exatidão a data e o ano que saímos da casa mas o dono da fábrica estava construindo um pequeno prédio do lado oposto da rua, no número 156.
Creio hoje que a intenção não era salvar e abrigar os funcionários e moradores das casas mas sim de expandir a fábrica com a demolição dos sobrados que ficavam exatamente entre as partes da fábrica. Minha memória não traz com exatidão os acontecimentos e sua sequência cronológica mas lembro de mudanças nas conversas de meus pais como se estivessem se preparando para uma nova etapa. Lembro apenas que a referência de nossa moradia denominava-se "casa velha, o que perdurou por muito tempo,    inclusive quando contávamos fatos na vida adulta.

sábado, 23 de abril de 2016

O botão no nariz.

Adorava ir ao quarto do meu tio Artur. Ele tinha um amigo chamado Roberto que sempre me trazia um saquinho branco de papel, cheinho de balas Toffe. Eram embalagens azuis com letras douradas.
Mas meu tio fazia brincadeiras engraçadas e muitas mágicas.
Lembro de objetos que sumiam entre os cabelos e moedas que iam de uma mão para outra . Até hoje não sei se eram mágicas ou simplesmente enganação infantil.
Mas tinha uma brincadeira que me fascinava : ele colocava um grande botão no nariz  e ele o fazia girar conforme a respiração.
Um dia fui tentar imitar a façanha, só que peguei um botãozinho pequeno com um pezinho e coloquei no nariz. Aspirei o botão e aquilo virou um circo dos horrores.
Só lembro de meu pai me pegando no colo e saindo correndo na farmácia da Rua Barão de Jaguara , acordando o farmacêutico para tirar aquele botãozinho do meu nariz.
Ele veio com uma pinça enorme, cheio de algodão e conseguiu tirar "a mágica de meu nariz".
Saiu muito sangue e lembro que meu pai comprou um pirulito para mim.
Outro acidente que me lembro foi no sítio do meu Tio Lúcio em Nova Lousã.
Íamos bastante para lá e eu adorava ver os bichos no pasto, brincar na terra, andar de carroça puxada por cavalos.


Passeio de carroça com minhas primas e minha mãe.
                                          Nova Lousã : Meus primos e minha mãe segurando a Cibéle


Eu devia ter uns 5 anos. Minha tia Angelina acordava todas as crianças muito cedo, dava uma caneca de ágata para cada uma, com bastante açúcar e canela e íamos numa fila para o pasto pois meu tio tirava leite da teta da vaca e tínhamos que tomar ali mesmo.
Cada criança ia embaixo da vaca ,colocava a caneca sob a teta enquanto meu tio fazia a ordenha. E num dia depois de voltarmos para casa, vi que havia um cavalo no pasto com um filhote.
Minha curiosidade para ver o cavalinho me fez voltar ao pasto. Só que havia uma cerca de arame farpado e ao atravessar rasguei meu joelho com dois enormes cortes.
Voltei chorando e lembro da calma de meu tio Lúcio, que era maçom, me pegando no colo e muito calmamente conversando comigo.
Fomos para um galpão de madeira, anexo à casa. Lá ele preparou um material de curativos, depois me sentou nos seus joelhos e com uma agulha enorme, que várias vezes ele queimava num foguinho azul , foi costurando meus cortes.
Não lembro de ter sentido dor nenhuma, pois a calma dele, com uma conversa cujo teor não me lembro, me dava confiança.
Tenho a cicatriz até hoje!
Marcas de minha infância ......


                          Minha prima Nene de Nova Lousã nos visitando na Rua dos Alpes .
                                Meu tio Lúcio, eu, Nene, Cibéle















Nova Lousã: Cibéle dando uma voltinha no cavalo.

Outros passeios. E uma bruxa assustadora.


                                           Meu pai e eu no Museu do Ipiranga
                             

Outros passeios de finais de semana eram ir ao Museu do Ipiranga e também ao Aeroporto de Congonhas. Eu adorava ver os aviões chegando e decolando. Ficava imaginado viagens pelo mundo e queria ser aeromoça.

Agora, um dos passeios preferidos era quando íamos ao Parque Shangai. Ficava muito perto de minha casa e nós íamos a pé. Sempre achei que era bem atrás de minha casa mas não tenho muita certeza. 

Eu adorava o carrossel e a roda gigante mas algo me assustava: a enorme bruxa que gargalhava e ficava bem no alto dentro de uma redoma.

Minha mãe e meu pai diziam que se eu não obedecesse, a bruxa viria até a minha casa me pegar. 
Outra coisa que me apavorava era o homem do saco.
Achava que o homem barbudo, que vagava pelas ruas com aquele enorme saco nas costas, levava todas as crianças malcriadas dentro daquela coisa ...



sábado, 13 de fevereiro de 2016

Em Mogi das Cruzes, um casarão que povoou minha imaginação.

Não sei com precisão quando chegou a televisão em minha sala. Talvez em 1958 ou 59. Mas lembro bem dos desenhos que me fascinavam. Não cansava de ver o Pica Pau, Dom Pixote, Zé Colméia, Manda-Chuva e Batatinha. Adorava também o Popeye e comia espinafre achando que eu teria todo aquele poder e força.
Os horários para a TV eram rígidos. Só minha mãe podia ligá-la. Mas por volta das sete horas da noite o terror me dominava. Quando aparecia o comercial dos cobertores Parayba com aquele bonequinho com a lamparina na mão algo muito ruim se anunciava e eu começava a chorar. A musiquinha " Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar . Um bom sono prá você e um alegre despertar ..." me enchia de angústia pois era o código para ir para cama e dormir...
Hora triste e apavorante. Mas não tinha jeito ! Era a hora de dormir . Pegava a chupeta e meu urso azul sujo e tinha que subir.
Nos finais de semana tínhamos passeios. Lembro-me que íamos para Santo André onde morava meu tio Samuel ( irmão de minha mãe). Lá eu brincava de guerra com meus primos, sentava na lambreta do Samuel que era maior que a do meu tio Artur.
Tio Samuel, Alemão, Cibéle e eu
Às vezes íamos para Mogi das Cruzes visitar minha avó e também íamos ao casarão onde morava meu bisavô. Gostava de passear com ele na bica, num lugar chamado Figueirão (talvez referência a alguma figueira que existira no local) e achava aquela casa enorme, cheia de mistérios. Havia quartos que criança não podia entrar e aquele assoalho oco de madeira e que podíamos olhar as frestas entre eles. Sempre achávamos que tinha um tesouro escondido lá embaixo.


Minha avó contava muitas histórias sobre o casarão. Que Dom Pedro se hospedava lá quando ia para o litoral . Que as cadeiras eram bordadas com fio de ouro e que havia escondida por lá muita libra esterlina, trazida de Portugal. Dizem que minha avó era descendente de Cabral e por isso todas aquelas terras de Mogi ficaram na família e por este motivo os nobres se hospedavam lá. Eram 80 alqueires espalhados por uma grande extensão.
Hoje grande parte foi desapropriada para passar a estrada Mogi-Bertioga e os oleodutos da Petrobrás.
A minha avó realmente carregava o sobrenome Cabral: Esther Carlos Cabral de Vasconcellos Nogueira Adlung. Ela era descendente de portugueses e se casou com um alemão, João Adlung, refugiado de guerra.
O engraçado é que todos os irmãos de minha avó moravam naquelas terras e alguns no casarão, inclusive ela . Para se ter ideia do tamanho deste casarão é como se cada um tivesse um apartamento dentro dela. Aquilo tudo povoava a minha mente com mistérios e histórias.


Casarão em Mogi das Cruzes - Ponte Grande















Meu bisavô no centro, minhas tias e tios ,meus primos, eu e minha mãe e empregada Ana















Minha avó mocinha Esther Carlos Nogueira:1898- 1986




Certidão de nascimento de João Cabral de Vasconcellos, avô de minha avó Esther, em Villa das Capellas, Açores,  Portugal

Minha irmã chegou. A solidão acabou.

Não lembro bem da chegada de minha irmã. Afinal eu tinha dois anos. Mas conforme os relatos de minha mãe, eu fiquei com muito ciúme. Segundo ela, um dia me encontrou no berço coberta de cocô.Tirei todas as porcarias da fralda e me besuntei inteira.
Sei que meu berço era ao lado da cama de meus pais e alguns lampejos de lembrança me fazem ver que a Cibéle minha irmã era colocada na cama.
Minha mãe contava que um dia ela encontrou a Cibéle bem na beiradinha da cama. Se ela espirrasse cairia no chão. Mamãe dizia que eu fizera isto por puro ciúme. Contou-me que nunca me deixava sozinha com a Cibéle pois tinha medo que eu aprontasse alguma coisa.
Minha avó me dava uma atenção maior. Lembro de seus cafunés e das histórias contadas por ela. Mário Mussa, amigo do meu pai, e sua mulher foram meus padrinhos de nascimento e tinham uma filha chamada Telminha. Talvez pela sua ascendência árabe,  me deram o livro As Mil e Uma Noites quando fiz dez anos.
Telminha no colo da madrinha, eu no centro, Cibéle no colo de minha mãe Lola















sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Por que odeio pimenta: um trauma de infância.


Direto ao assunto: a chupeta foi um elemento que me acompanhou nos meus primeiros anos. Lembro sempre de minha mãe contando muitas estórias na tentativa de me fazer abandonar o tal mimo. Muitas tentativas em vão.
Quando eu perdia a chupeta era um Deus nos acuda ! Eu chorava, não dormia e batia o desespero.
Sei que descobri uma estratégia para nunca ficar sem chupeta pois muitas vezes minha mãe a escondia.
Fiz alguns esconderijos secretos. Nos tais gavetões de mantimentos sempre tinha no fundo do arroz, do feijão, várias chupetas. Algumas dentro de potes e outras no quartinho de meu tio.
Sei que num belo dia todas as minhas chupetas estavam muito ardidas. Todas , todas elas sem exceção.
Lembro-me de ir a todos os meus esconderijos e lavado uma por uma e nada . A cada chupada minha boca ficava inchada e vermelha.
Minha mãe tinha mergulhado todas as minhas chupetas em caldo de pimenta e a borracha ficara impregnada daquele sabor.
Larguei a chupeta depois disto mas até hoje não suporto nem o cheiro de conserva de pimenta.
" Freud explica...."

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Dick e o banho de talco com catupiry.

Eu nunca percebi que Dick era feroz mas minha mãe dizia que meu pai bateu nele com um fio de ferro por ter se aproximado de mim e quase ser mordido.
Para mim Dick era um bobão....
Lembro que aos sábados era dia de supermercado. As compras eram feitas no PEG e PAG do Largo do Cambuci e quando as compras eram colocadas sobre a mesa da cozinha, com aqueles grandes sacos de papel pardo, a curiosidade era enorme em busca de quitutes do fim de semana.
Numa destas investidas lembro de ter encontrado uma caixa de catupiry e uma lata de talco.
Sabe-se lá o que a imaginação ditara em minha cabeça mas aquilo transformara-se em sabão e talco para lavar o Dick. Sentei na porta da cozinha que dava para o quintal, Dick ao meu lado, pacientemente sendo untado em toda a extensão de seu corpo com aquele catupiry e finalizado com a lata inteira de talco sobre aquela gordura densa do queijo.
Dick era preto e pelos longos (Basset misturado com Lulu) e ele ficou branquinho como a neve. Só seus olhos brilhavam. Quando minha mãe viu, chamou meu pai e levaram o Dick para o tanque do quintal . Meu pai dizia que precisou de dois dias para tirar toda a gordura de seus pelos.

A casinha do Dick
A casa onde morávamos pertencia ao dono da fábrica. Ao entrar por um pequeno quintal, com uma floreira na janela, dava-se para a sala pequena onde tinha a estante já descrita, a poltrona que derrubou a Dona Pina e um sofá. Havia uma porta de madeira e vidro que dava para a sala de jantar com uma mesa de madeira e cadeiras estofadas de verde. Havia também um banheiro grande e lembro-me bem da banheira branca. Depois da sala de jantar estava a cozinha onde tinha um grande armário com gavetões de mantimentos e no fundo da cozinha tinha um quartinho onde morava meu tio Artur e de lá tinha a porta para o quintal. Da pequena sala saia uma escada de madeira que levava para os dois  quartos de cima  e um pequeno banheiro. Creio que eu tenha vivido nesta casa até os cinco ou seis anos de idade.
A configuração da casa mudava constantemente pois as enchentes do Rio Tamanduateí na época das chuvas faziam com que os móveis fossem levantados e muitos levados para cima, mesmo com as comportas colocadas nas portas. A água subia pelos ralos e sempre via minha mãe puxando a água do banheiro de baixo.

Memórias- Parte II

A gaita de meu pai
Também não lembro o que aconteceu com o galo da Dona Mariquinha, a vizinha que morava ao lado de nosso sobrado. A fascinação por aquele galo me fazia acordar todos os dias, como num ritual, e pegar a mão de minha mãe e puxá-la , antes do café da manhã, para cumprimentar o galo garboso, com a cabeça erguida e imponente.
Dona Mariquinha, também num ritual diário, trazia em suas mãos um punhado de milho e transferia para as minhas que já se encontravam em forma de concha para receber os grãos e esperar o galo a comer bicando levemente cada grão do milho.
Após alimentá-lo, voltava para casa para tomar o leite .
A casa ainda é vívida na memória: a pequena entrada com portão de ferro, ladeado com uma grade de lanças, onde espetava a boneca e subia no muro para espreitar o movimento da rua, ou esperar o tintureiro japonês que trazia as calças de meu pai com aquele vinco impecável. Até o dia em que meu cachorro Dick, fiel companheiro, avançou no tintureiro e arrancou um pedaço de sua calça. Ele também, após este incidente, sumiu. Na verdade até hoje não sei se realmente sumiu ou se estes fatos cortaram os laços da memória e apagaram as lembranças como uma fumacinha mágica.
Dick foi meu cachorro. Segundo meus pais, ganhei de presente no meu nascimento. Ele também era filhotinho e crescemos juntos.
Meus pais diziam que ele era um cachorro muito bravo mas eu não conseguia enxergá-lo como tal pois Dick me acompanhava em todas as brincadeiras e me seguia como um guarda costa, preenchendo o meu solitário imaginário infantil. Era assim que eu me sentia: solitária.
Quando eu pegava meu carrinho verde para dar voltas no quintal, Dick pulava na garupa e viajávamos no mundo encantado.
Todos os meus brinquedos e roupas da primeira infância eram masculinos pois meu pai, como um bom descendente italiano, esperava um menino como primogênito e todo o meu enxoval fora comprado com esta expectativa.
Quando nasci, enforcada pelo cordão umbilical fazendo minha mãe sofrer por quase três dias, em meio aos rojões das festas juninas, e dada como morta nos primeiros momentos do que seria a vida, minha avó Esther - a parteira - preparando-se para comunicar o  nascimorto" surpreendeu-se com o sopro repentino de vida que me fora imposto: "Vai viver menina...você não é menino mas irá cumprir a sua sina....." .
Não sei qual foi a reação e a frustração de meu pai ao ver sua esperança de perpetuar o nome da família desmanchar-se : - " Uma menina !!!"
A partir daí herdei todo o enxoval e brinquedos masculinos comprados por ele e talvez pela falta de recursos que tínhamos não podia ser trocado.
Mas voltando ao meu fiel escudeiro Dick: éramos grudados um ao outro , unto com meu urso de pelúcia azul sujo. Eu fazia tudo com ele. Montava como se ele fosse o meu cavalo, entrava no grande viveiro onde meu pai criava pássaros para ver e quebrar na inocência infantil os ovinhos mágicos que eles botavam . Dick ficava do lado de fora tomando conta da travessura e latia alto quando meu pai ou minha mãe se aproximava. Até avançando neles, rosnando e ameaçando.
Viveiro dos pássaros - o flagrante  

"Só os quem tem memórias são capazes de viver o frágil tempo do presente". Frase do filme "Nostalgia da Luz ".


Seis horas da tarde. Os apitos das fábricas anunciam numa sintonia melancólica mais um fim de dia.
Os movimentos nas calçadas cessam suas atribulações do trabalho e um cheiro ocre de perfumes, sabonetes e desodorantes se misturam e impregnam o ar como uma despedida de mais um dia árduo.
Um caminhar monótono e ao mesmo tempo efusivo em direção à volta para casa. A avenida cortada pelo  Tamanduateí se colore com filas intermináveis nos pontos de ônibus espalhados ao longo do rio .
Aos poucos, o silêncio domina as ruas fabris e tudo escurece de repente.

Naquela rua que até no nome pretendia ser um pedaço da Suíça - Alpes - as casas eram denunciadas pela sequência das luzes pálidas das janelas.
Tudo aquilo parecia se travestir de eternidade: as pessoas, os vizinhos conhecidos há muito, o bar, as casas mais modestas com seus porões habitáveis, outras um pouco mais abastadas e maiores onde moravam as famílias conhecidas do bairro.

A "prefeita" da rua era a Dona Antônia, com seu cachorro minúsculo, mas uma fera que mordia qualquer perna mais  próxima do portão. Era um fiel guarda do seu pequeno palácio de esquina.

Tudo era muito familiar mas vestido de uma melancolia cinza.
Aquele pedaço do mundo parecia imutável. Um pequeno feudo dominado por três ou quatro grandes fábricas e outras menores provedoras das gigantes. E em volta, os súditos moradores de seus arredores.

Nos finais de semana, a vida da rua mudava. Parecia uma vila italiana: as pessoas colocavam cadeiras nas portas das casas e ficavam praticamente o dia todo trocando conversas, receitas, comidas. Os homens bebiam cerveja e ouviam jogos de futebol nos rádios de pilha e se tornavam técnicos de todos os lances. O pó branco em tufos de algodão que corriam  com o vento eram os expurgos da Tecelagem Extra Fina, vizinha de nossa casa.

Em datas especiais, fechava-se a rua para festas. Natal e Festas Juninas eram tradicionais. No dia de São João e São Pedro bandeiras coloridas cruzavam o espaço e à noite havia fogueira com muita gente ao redor.

O carnaval era típico pois havia o Clube Internacional na Rua Silveira da Mota  onde as crianças eram levadas à matinê. Também era tradição ver a malhação do Judas na rua Lavapés.
A memória remonta a cenas e mais cenas numa sequência ilógica, como raios lampejantes de imagens que surgem diante dos olhos e trazem cheiros inesquecíveis e sensações estranhas.

Havia a mulher que vendia gelatinas: Dona Pina, uma senhora gorda com um grande coque prendendo seus cabelos brancos. Entrava nas casas com uma sacola e dela retirava potes coloridos, um grande deleite aos olhos infantis, acostumados aos recursos parcos. E a cena chocante que gruda na lembrança é que Dona Pina, talvez por ser grande e gorda, nunca sentava normalmente na pequena poltrona que ficava em frente à porta de entrada da casa e atrás de uma estante com portas de vidros ( guardando os segredos e histórias nos livros mantidos pelo meu pai e trancados com uma   traquitana que ele inventara). Dona Pina sentava-se no braço da poltrona. E, num dia daqueles, esperado afoita para aguçar o paladar e atiçar a vontade infantil, Dona Pina,  ao retirar seus potes coloridos,  perdeu o equilíbrio e caiu em câmera lenta para o lado esquerdo, fazendo todos os potes coloridos se projetarem para o alto e se espatifarem ao chão. Ao mesmo tempo, com seu cotovelo, como um escudo para se proteger de uma queda patética, apoiara-se no vidro que se estilhaça em mil pedaços e tira uma "tampa" enorme de seu cotovelo. O sangue vermelho se esvai e mistura-se ao colorido das gelatinas. Aí a câmera lenta passa para um movimento acelerado, com minha mãe,  minha avó e as vizinhas que se encontravam na sala buscando freneticamente a forma de socorrer e estancar a cachoeira vermelha que jorrava ao longo daquele braço enorme.
Meus olhos enxergam a minha avó com uma toalha encharcada com um unguento feito às pressas e minha mãe tão pequena ao lado daquela mulher enorme, tentando levantá-la e colocá-la novamente de pé.
Não lembro do desfecho da história pois crianças eram tiradas do recinto em situações mais graves.
Depois deste episódio não lembro mais das visitas periódicas dos potes coloridos e o que aconteceu com a Dona Pina.