Seis horas da tarde. Os apitos das fábricas anunciam numa sintonia melancólica mais um fim de dia.
Os movimentos nas calçadas cessam suas atribulações do trabalho e um cheiro ocre de perfumes, sabonetes e desodorantes se misturam e impregnam o ar como uma despedida de mais um dia árduo.
Um caminhar monótono e ao mesmo tempo efusivo em direção à volta para casa. A avenida cortada pelo Tamanduateí se colore com filas intermináveis nos pontos de ônibus espalhados ao longo do rio .
Aos poucos, o silêncio domina as ruas fabris e tudo escurece de repente.
Naquela rua que até no nome pretendia ser um pedaço da Suíça - Alpes - as casas eram denunciadas pela sequência das luzes pálidas das janelas.
Tudo aquilo parecia se travestir de eternidade: as pessoas, os vizinhos conhecidos há muito, o bar, as casas mais modestas com seus porões habitáveis, outras um pouco mais abastadas e maiores onde moravam as famílias conhecidas do bairro.
A "prefeita" da rua era a Dona Antônia, com seu cachorro minúsculo, mas uma fera que mordia qualquer perna mais próxima do portão. Era um fiel guarda do seu pequeno palácio de esquina.
Tudo era muito familiar mas vestido de uma melancolia cinza.
Aquele pedaço do mundo parecia imutável. Um pequeno feudo dominado por três ou quatro grandes fábricas e outras menores provedoras das gigantes. E em volta, os súditos moradores de seus arredores.
Nos finais de semana, a vida da rua mudava. Parecia uma vila italiana: as pessoas colocavam cadeiras nas portas das casas e ficavam praticamente o dia todo trocando conversas, receitas, comidas. Os homens bebiam cerveja e ouviam jogos de futebol nos rádios de pilha e se tornavam técnicos de todos os lances. O pó branco em tufos de algodão que corriam com o vento eram os expurgos da Tecelagem Extra Fina, vizinha de nossa casa.
Em datas especiais, fechava-se a rua para festas. Natal e Festas Juninas eram tradicionais. No dia de São João e São Pedro bandeiras coloridas cruzavam o espaço e à noite havia fogueira com muita gente ao redor.
O carnaval era típico pois havia o Clube Internacional na Rua Silveira da Mota onde as crianças eram levadas à matinê. Também era tradição ver a malhação do Judas na rua Lavapés.
A memória remonta a cenas e mais cenas numa sequência ilógica, como raios lampejantes de imagens que surgem diante dos olhos e trazem cheiros inesquecíveis e sensações estranhas.
Havia a mulher que vendia gelatinas: Dona Pina, uma senhora gorda com um grande coque prendendo seus cabelos brancos. Entrava nas casas com uma sacola e dela retirava potes coloridos, um grande deleite aos olhos infantis, acostumados aos recursos parcos. E a cena chocante que gruda na lembrança é que Dona Pina, talvez por ser grande e gorda, nunca sentava normalmente na pequena poltrona que ficava em frente à porta de entrada da casa e atrás de uma estante com portas de vidros ( guardando os segredos e histórias nos livros mantidos pelo meu pai e trancados com uma traquitana que ele inventara). Dona Pina sentava-se no braço da poltrona. E, num dia daqueles, esperado afoita para aguçar o paladar e atiçar a vontade infantil, Dona Pina, ao retirar seus potes coloridos, perdeu o equilíbrio e caiu em câmera lenta para o lado esquerdo, fazendo todos os potes coloridos se projetarem para o alto e se espatifarem ao chão. Ao mesmo tempo, com seu cotovelo, como um escudo para se proteger de uma queda patética, apoiara-se no vidro que se estilhaça em mil pedaços e tira uma "tampa" enorme de seu cotovelo. O sangue vermelho se esvai e mistura-se ao colorido das gelatinas. Aí a câmera lenta passa para um movimento acelerado, com minha mãe, minha avó e as vizinhas que se encontravam na sala buscando freneticamente a forma de socorrer e estancar a cachoeira vermelha que jorrava ao longo daquele braço enorme.
Meus olhos enxergam a minha avó com uma toalha encharcada com um unguento feito às pressas e minha mãe tão pequena ao lado daquela mulher enorme, tentando levantá-la e colocá-la novamente de pé.
Não lembro do desfecho da história pois crianças eram tiradas do recinto em situações mais graves.
Depois deste episódio não lembro mais das visitas periódicas dos potes coloridos e o que aconteceu com a Dona Pina.