sábado, 13 de fevereiro de 2016

Em Mogi das Cruzes, um casarão que povoou minha imaginação.

Não sei com precisão quando chegou a televisão em minha sala. Talvez em 1958 ou 59. Mas lembro bem dos desenhos que me fascinavam. Não cansava de ver o Pica Pau, Dom Pixote, Zé Colméia, Manda-Chuva e Batatinha. Adorava também o Popeye e comia espinafre achando que eu teria todo aquele poder e força.
Os horários para a TV eram rígidos. Só minha mãe podia ligá-la. Mas por volta das sete horas da noite o terror me dominava. Quando aparecia o comercial dos cobertores Parayba com aquele bonequinho com a lamparina na mão algo muito ruim se anunciava e eu começava a chorar. A musiquinha " Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar . Um bom sono prá você e um alegre despertar ..." me enchia de angústia pois era o código para ir para cama e dormir...
Hora triste e apavorante. Mas não tinha jeito ! Era a hora de dormir . Pegava a chupeta e meu urso azul sujo e tinha que subir.
Nos finais de semana tínhamos passeios. Lembro-me que íamos para Santo André onde morava meu tio Samuel ( irmão de minha mãe). Lá eu brincava de guerra com meus primos, sentava na lambreta do Samuel que era maior que a do meu tio Artur.
Tio Samuel, Alemão, Cibéle e eu
Às vezes íamos para Mogi das Cruzes visitar minha avó e também íamos ao casarão onde morava meu bisavô. Gostava de passear com ele na bica, num lugar chamado Figueirão (talvez referência a alguma figueira que existira no local) e achava aquela casa enorme, cheia de mistérios. Havia quartos que criança não podia entrar e aquele assoalho oco de madeira e que podíamos olhar as frestas entre eles. Sempre achávamos que tinha um tesouro escondido lá embaixo.


Minha avó contava muitas histórias sobre o casarão. Que Dom Pedro se hospedava lá quando ia para o litoral . Que as cadeiras eram bordadas com fio de ouro e que havia escondida por lá muita libra esterlina, trazida de Portugal. Dizem que minha avó era descendente de Cabral e por isso todas aquelas terras de Mogi ficaram na família e por este motivo os nobres se hospedavam lá. Eram 80 alqueires espalhados por uma grande extensão.
Hoje grande parte foi desapropriada para passar a estrada Mogi-Bertioga e os oleodutos da Petrobrás.
A minha avó realmente carregava o sobrenome Cabral: Esther Carlos Cabral de Vasconcellos Nogueira Adlung. Ela era descendente de portugueses e se casou com um alemão, João Adlung, refugiado de guerra.
O engraçado é que todos os irmãos de minha avó moravam naquelas terras e alguns no casarão, inclusive ela . Para se ter ideia do tamanho deste casarão é como se cada um tivesse um apartamento dentro dela. Aquilo tudo povoava a minha mente com mistérios e histórias.


Casarão em Mogi das Cruzes - Ponte Grande















Meu bisavô no centro, minhas tias e tios ,meus primos, eu e minha mãe e empregada Ana















Minha avó mocinha Esther Carlos Nogueira:1898- 1986




Certidão de nascimento de João Cabral de Vasconcellos, avô de minha avó Esther, em Villa das Capellas, Açores,  Portugal

Minha irmã chegou. A solidão acabou.

Não lembro bem da chegada de minha irmã. Afinal eu tinha dois anos. Mas conforme os relatos de minha mãe, eu fiquei com muito ciúme. Segundo ela, um dia me encontrou no berço coberta de cocô.Tirei todas as porcarias da fralda e me besuntei inteira.
Sei que meu berço era ao lado da cama de meus pais e alguns lampejos de lembrança me fazem ver que a Cibéle minha irmã era colocada na cama.
Minha mãe contava que um dia ela encontrou a Cibéle bem na beiradinha da cama. Se ela espirrasse cairia no chão. Mamãe dizia que eu fizera isto por puro ciúme. Contou-me que nunca me deixava sozinha com a Cibéle pois tinha medo que eu aprontasse alguma coisa.
Minha avó me dava uma atenção maior. Lembro de seus cafunés e das histórias contadas por ela. Mário Mussa, amigo do meu pai, e sua mulher foram meus padrinhos de nascimento e tinham uma filha chamada Telminha. Talvez pela sua ascendência árabe,  me deram o livro As Mil e Uma Noites quando fiz dez anos.
Telminha no colo da madrinha, eu no centro, Cibéle no colo de minha mãe Lola















sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Por que odeio pimenta: um trauma de infância.


Direto ao assunto: a chupeta foi um elemento que me acompanhou nos meus primeiros anos. Lembro sempre de minha mãe contando muitas estórias na tentativa de me fazer abandonar o tal mimo. Muitas tentativas em vão.
Quando eu perdia a chupeta era um Deus nos acuda ! Eu chorava, não dormia e batia o desespero.
Sei que descobri uma estratégia para nunca ficar sem chupeta pois muitas vezes minha mãe a escondia.
Fiz alguns esconderijos secretos. Nos tais gavetões de mantimentos sempre tinha no fundo do arroz, do feijão, várias chupetas. Algumas dentro de potes e outras no quartinho de meu tio.
Sei que num belo dia todas as minhas chupetas estavam muito ardidas. Todas , todas elas sem exceção.
Lembro-me de ir a todos os meus esconderijos e lavado uma por uma e nada . A cada chupada minha boca ficava inchada e vermelha.
Minha mãe tinha mergulhado todas as minhas chupetas em caldo de pimenta e a borracha ficara impregnada daquele sabor.
Larguei a chupeta depois disto mas até hoje não suporto nem o cheiro de conserva de pimenta.
" Freud explica...."

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Dick e o banho de talco com catupiry.

Eu nunca percebi que Dick era feroz mas minha mãe dizia que meu pai bateu nele com um fio de ferro por ter se aproximado de mim e quase ser mordido.
Para mim Dick era um bobão....
Lembro que aos sábados era dia de supermercado. As compras eram feitas no PEG e PAG do Largo do Cambuci e quando as compras eram colocadas sobre a mesa da cozinha, com aqueles grandes sacos de papel pardo, a curiosidade era enorme em busca de quitutes do fim de semana.
Numa destas investidas lembro de ter encontrado uma caixa de catupiry e uma lata de talco.
Sabe-se lá o que a imaginação ditara em minha cabeça mas aquilo transformara-se em sabão e talco para lavar o Dick. Sentei na porta da cozinha que dava para o quintal, Dick ao meu lado, pacientemente sendo untado em toda a extensão de seu corpo com aquele catupiry e finalizado com a lata inteira de talco sobre aquela gordura densa do queijo.
Dick era preto e pelos longos (Basset misturado com Lulu) e ele ficou branquinho como a neve. Só seus olhos brilhavam. Quando minha mãe viu, chamou meu pai e levaram o Dick para o tanque do quintal . Meu pai dizia que precisou de dois dias para tirar toda a gordura de seus pelos.

A casinha do Dick
A casa onde morávamos pertencia ao dono da fábrica. Ao entrar por um pequeno quintal, com uma floreira na janela, dava-se para a sala pequena onde tinha a estante já descrita, a poltrona que derrubou a Dona Pina e um sofá. Havia uma porta de madeira e vidro que dava para a sala de jantar com uma mesa de madeira e cadeiras estofadas de verde. Havia também um banheiro grande e lembro-me bem da banheira branca. Depois da sala de jantar estava a cozinha onde tinha um grande armário com gavetões de mantimentos e no fundo da cozinha tinha um quartinho onde morava meu tio Artur e de lá tinha a porta para o quintal. Da pequena sala saia uma escada de madeira que levava para os dois  quartos de cima  e um pequeno banheiro. Creio que eu tenha vivido nesta casa até os cinco ou seis anos de idade.
A configuração da casa mudava constantemente pois as enchentes do Rio Tamanduateí na época das chuvas faziam com que os móveis fossem levantados e muitos levados para cima, mesmo com as comportas colocadas nas portas. A água subia pelos ralos e sempre via minha mãe puxando a água do banheiro de baixo.

Memórias- Parte II

A gaita de meu pai
Também não lembro o que aconteceu com o galo da Dona Mariquinha, a vizinha que morava ao lado de nosso sobrado. A fascinação por aquele galo me fazia acordar todos os dias, como num ritual, e pegar a mão de minha mãe e puxá-la , antes do café da manhã, para cumprimentar o galo garboso, com a cabeça erguida e imponente.
Dona Mariquinha, também num ritual diário, trazia em suas mãos um punhado de milho e transferia para as minhas que já se encontravam em forma de concha para receber os grãos e esperar o galo a comer bicando levemente cada grão do milho.
Após alimentá-lo, voltava para casa para tomar o leite .
A casa ainda é vívida na memória: a pequena entrada com portão de ferro, ladeado com uma grade de lanças, onde espetava a boneca e subia no muro para espreitar o movimento da rua, ou esperar o tintureiro japonês que trazia as calças de meu pai com aquele vinco impecável. Até o dia em que meu cachorro Dick, fiel companheiro, avançou no tintureiro e arrancou um pedaço de sua calça. Ele também, após este incidente, sumiu. Na verdade até hoje não sei se realmente sumiu ou se estes fatos cortaram os laços da memória e apagaram as lembranças como uma fumacinha mágica.
Dick foi meu cachorro. Segundo meus pais, ganhei de presente no meu nascimento. Ele também era filhotinho e crescemos juntos.
Meus pais diziam que ele era um cachorro muito bravo mas eu não conseguia enxergá-lo como tal pois Dick me acompanhava em todas as brincadeiras e me seguia como um guarda costa, preenchendo o meu solitário imaginário infantil. Era assim que eu me sentia: solitária.
Quando eu pegava meu carrinho verde para dar voltas no quintal, Dick pulava na garupa e viajávamos no mundo encantado.
Todos os meus brinquedos e roupas da primeira infância eram masculinos pois meu pai, como um bom descendente italiano, esperava um menino como primogênito e todo o meu enxoval fora comprado com esta expectativa.
Quando nasci, enforcada pelo cordão umbilical fazendo minha mãe sofrer por quase três dias, em meio aos rojões das festas juninas, e dada como morta nos primeiros momentos do que seria a vida, minha avó Esther - a parteira - preparando-se para comunicar o  nascimorto" surpreendeu-se com o sopro repentino de vida que me fora imposto: "Vai viver menina...você não é menino mas irá cumprir a sua sina....." .
Não sei qual foi a reação e a frustração de meu pai ao ver sua esperança de perpetuar o nome da família desmanchar-se : - " Uma menina !!!"
A partir daí herdei todo o enxoval e brinquedos masculinos comprados por ele e talvez pela falta de recursos que tínhamos não podia ser trocado.
Mas voltando ao meu fiel escudeiro Dick: éramos grudados um ao outro , unto com meu urso de pelúcia azul sujo. Eu fazia tudo com ele. Montava como se ele fosse o meu cavalo, entrava no grande viveiro onde meu pai criava pássaros para ver e quebrar na inocência infantil os ovinhos mágicos que eles botavam . Dick ficava do lado de fora tomando conta da travessura e latia alto quando meu pai ou minha mãe se aproximava. Até avançando neles, rosnando e ameaçando.
Viveiro dos pássaros - o flagrante  

"Só os quem tem memórias são capazes de viver o frágil tempo do presente". Frase do filme "Nostalgia da Luz ".


Seis horas da tarde. Os apitos das fábricas anunciam numa sintonia melancólica mais um fim de dia.
Os movimentos nas calçadas cessam suas atribulações do trabalho e um cheiro ocre de perfumes, sabonetes e desodorantes se misturam e impregnam o ar como uma despedida de mais um dia árduo.
Um caminhar monótono e ao mesmo tempo efusivo em direção à volta para casa. A avenida cortada pelo  Tamanduateí se colore com filas intermináveis nos pontos de ônibus espalhados ao longo do rio .
Aos poucos, o silêncio domina as ruas fabris e tudo escurece de repente.

Naquela rua que até no nome pretendia ser um pedaço da Suíça - Alpes - as casas eram denunciadas pela sequência das luzes pálidas das janelas.
Tudo aquilo parecia se travestir de eternidade: as pessoas, os vizinhos conhecidos há muito, o bar, as casas mais modestas com seus porões habitáveis, outras um pouco mais abastadas e maiores onde moravam as famílias conhecidas do bairro.

A "prefeita" da rua era a Dona Antônia, com seu cachorro minúsculo, mas uma fera que mordia qualquer perna mais  próxima do portão. Era um fiel guarda do seu pequeno palácio de esquina.

Tudo era muito familiar mas vestido de uma melancolia cinza.
Aquele pedaço do mundo parecia imutável. Um pequeno feudo dominado por três ou quatro grandes fábricas e outras menores provedoras das gigantes. E em volta, os súditos moradores de seus arredores.

Nos finais de semana, a vida da rua mudava. Parecia uma vila italiana: as pessoas colocavam cadeiras nas portas das casas e ficavam praticamente o dia todo trocando conversas, receitas, comidas. Os homens bebiam cerveja e ouviam jogos de futebol nos rádios de pilha e se tornavam técnicos de todos os lances. O pó branco em tufos de algodão que corriam  com o vento eram os expurgos da Tecelagem Extra Fina, vizinha de nossa casa.

Em datas especiais, fechava-se a rua para festas. Natal e Festas Juninas eram tradicionais. No dia de São João e São Pedro bandeiras coloridas cruzavam o espaço e à noite havia fogueira com muita gente ao redor.

O carnaval era típico pois havia o Clube Internacional na Rua Silveira da Mota  onde as crianças eram levadas à matinê. Também era tradição ver a malhação do Judas na rua Lavapés.
A memória remonta a cenas e mais cenas numa sequência ilógica, como raios lampejantes de imagens que surgem diante dos olhos e trazem cheiros inesquecíveis e sensações estranhas.

Havia a mulher que vendia gelatinas: Dona Pina, uma senhora gorda com um grande coque prendendo seus cabelos brancos. Entrava nas casas com uma sacola e dela retirava potes coloridos, um grande deleite aos olhos infantis, acostumados aos recursos parcos. E a cena chocante que gruda na lembrança é que Dona Pina, talvez por ser grande e gorda, nunca sentava normalmente na pequena poltrona que ficava em frente à porta de entrada da casa e atrás de uma estante com portas de vidros ( guardando os segredos e histórias nos livros mantidos pelo meu pai e trancados com uma   traquitana que ele inventara). Dona Pina sentava-se no braço da poltrona. E, num dia daqueles, esperado afoita para aguçar o paladar e atiçar a vontade infantil, Dona Pina,  ao retirar seus potes coloridos,  perdeu o equilíbrio e caiu em câmera lenta para o lado esquerdo, fazendo todos os potes coloridos se projetarem para o alto e se espatifarem ao chão. Ao mesmo tempo, com seu cotovelo, como um escudo para se proteger de uma queda patética, apoiara-se no vidro que se estilhaça em mil pedaços e tira uma "tampa" enorme de seu cotovelo. O sangue vermelho se esvai e mistura-se ao colorido das gelatinas. Aí a câmera lenta passa para um movimento acelerado, com minha mãe,  minha avó e as vizinhas que se encontravam na sala buscando freneticamente a forma de socorrer e estancar a cachoeira vermelha que jorrava ao longo daquele braço enorme.
Meus olhos enxergam a minha avó com uma toalha encharcada com um unguento feito às pressas e minha mãe tão pequena ao lado daquela mulher enorme, tentando levantá-la e colocá-la novamente de pé.
Não lembro do desfecho da história pois crianças eram tiradas do recinto em situações mais graves.
Depois deste episódio não lembro mais das visitas periódicas dos potes coloridos e o que aconteceu com a Dona Pina.