domingo, 22 de janeiro de 2017

As lembranças de um mundo de luxo.

Nós transitávamos entre aquele mundinho do Cambuci e também num reduto que não nos pertencia.
O Mário Nicoli acabou casando com uma moradora do Cambuci. Era a  Filó, irmã de quem seria futuramente o ministro Delfim Neto.
Eles eram nossos vizinhos. O Delfim andava pelas ruas sempre embrenhado em causas do bairro . 
A Filó, sua irmã, ia na feira com um penteado que parecia um panetone, segundo diziam  os moradores
Sei através de  fofocas do bairro que o Mário,  quando começou a namorá-la, havia pago aulas 
de etiqueta para que ela pudesse ser apresentada à sociedade .
Só sei que quando eu tinha uns 6 anos de idade ( mais ou menos ) nós íamos  na casa do Mário 
e da Filó, já casados , pois meu pai tinha que levar serviços para ele .
Não lembro exatamente onde moravam  mas deveria ser nos Jardins ou Cerqueira César,
em um apartamento luxuoso. Seguindo todas as regras de comportamento ensinadas pelo meu pai, éramos recebidos por um serviçal numa sala muito bonita, cheia de cristais e enfeites.
Mas o que mais me impressionava era pisar num tapete branco muito macio onde eu via meus sapatinhos serem engolidos por aquela maciez. Eles desapareciam em  meio àqueles pelos macios.
De repente, aparecia a Filó com um pote de cristal repleto de bombons coloridos e me oferecia. Segundo as regras de meu pai, só podia pegar um. Ela insistia para pegar mais e, embora a vontade 
era mergulhar com as duas mãos naquele pote reluzente, eu me fazia de educada e recusava.
Mas na hora de ir embora a Filó colocava mais dois ou três bombons em minhas mãos que eram carregados para casa para dividir com minha mãe e minha irmã.
Outras vezes íamos no sítio do Mário em Jundiaí. Se eu não me engano chamava-se Gramadão 
ou Gramado.
Lá havia plantação de figo e uva. Lembro que tinha um trenzinho que nos levava para conhecer 
todos os recantos do sítio e sempre voltávamos de lá com caixas de figo e uvas e nos deliciávamos .
Havia festas neste sítio e lembro bem que numa delas, talvez aniversário da mãe do Mário Nicolli,
eu havia experimentado pela primeira vez na minha vida um ¨sanduichinho¨ de cogumelo.
Aquele sabor estranho em minha boca era indefinido. Lembrava de meus desenhos com casinhas de cogumelos e um vestido que eu tinha com toda a barra aplicada por minha mãe com ¨cogumelos- casinhas ¨pintados de vermelho com bolinhas brancas.
Na minha cabecinha de criança eu estava comendo as casinhas dos duendes e anões que ali habitavam.
Aquele champignon volteava a minha boca com aquele pensamento e sem saber se o gosto era bom ou ruim.
Aquele sítio era meio mágico e ao mesmo tempo inalcançável. Era uma coisa fora do real .
Sei que ali eu tinha que me comportar com todas as recomendações de meu pai e não podia brincar sem a autorização dele . Lembro que tinha um parquinho com gangorras e balanços e muitas árvores e flores. Era bonito.
Havia também as festas dentro da fábrica em que a Filó, o Mário e o futuro ministro Delfim Neto estavam presentes.
Não lembro o que comemoravam mas eram festas formais, com pessoas falando, discursos e placas inaugurais .



À esquerda meu pai, minha irmã e eu .



      
Mario Nicoli, Filomena, minha mãe, minha irmã e eu

Meu pai recebendo condecoração 










Ala de esmaltação da Petracco & Nicoli 
 .



Como era meu pai. Parte IV.

Em nossas viagens para o interior ele procurava nos levar nos recantos pobres para nos mostrar como viviam as pessoas.
Fazia questão de nos levar em asilos de velhinhos, onde ele levava comida, biscoitos e cobertas,
creio que para nos dizer que a vida tinha muitos lados de sofrimentos e sobrevivência.
Levava a gente em lavouras, nas casas de colonos, onde as crianças não tinham leite nas mamadeiras. 
Víamos que eram preparadas misturas de farinha de trigo, água e açúcar para aplacar a fome 
daquela gente.
Meu pai chegou a ser ameaçado em Santa Rita do Passa Quatro quando levávamos mantimentos 
para as famílias de lavradores. O capataz o chamou de lado e pediu que não fizéssemos mais aquilo 
pois iríamos acostumar mal aqueles trabalhadores.
Ele fazia questão de nos mostrar que a vida exigia muito mais do que poderíamos imaginar
 e o que vivíamos era uma vida de luxo diante da pobreza do mundo.
Dávamos valor a tudo que tínhamos e cada conquista era comemorada com muito vigor. 
Sabíamos que tudo era extremamente controlado .
Esta era a visão de mundo que ele nos passava. A vida é um contraste onde tudo convive em seus extremos e isto eu carrego até hoje. Ninguém é melhor que ninguém. Somos todos iguais enquanto 
seres humanos. Temos as mesmas dores, os mesmos sofrimentos, as mesmas emoções, as mesmas doenças e as mesmas alegrias. O que nos molda é a sociedade que nos cerca.
Nossas viagens com a Kombi da Petracco




Como era meu pai. Parte III

Nunca soube da real estória sobre a família de meu pai. Isto era relatado pela minha mãe e algumas pessoas da família. Talvez minha mãe criticasse estes atos pois passávamos necessidades para que ele pudesse arcar com tudo isto.
Meu pai era um homem que tinha muitos conhecimentos mas também era reservado e tinha um lado desconhecido, com mistérios velados e não revelados sobre seu passado e sua família. Pouco sei sobre meus avós e tios distantes. Só tinha contato com os que moravam em São Paulo e no interior.
Não sei exatamente quando meus avós chegaram da Itália, se meu avô veio primeiro e depois minha vó. Sei que eram da Região do Veneto. Que eles se casaram em Cremona e vieram ara o Brasil.
Mas detalhes desconheço ....
Alguns episódios marcam bem a minha memória.
Lembro que em 1962 ou 1963 muitas greves aconteciam no país. Ia para a escola em meio a carros 
do exército cercando as ruas do Cambuci. Era um bairro fabril e muitas indústrias se localizavam 
na região.
A perua do Cardeal era parada e só depois de revistada podíamos descer até nossa casa .
Lembro da greve dos metalúrgicos e minha mãe apavorada dentro de casa pois meu pai estava 
na porta da fábrica sendo ameaçado com faca por quebrar o piquete em frente aos portões da fábrica.
Minha mãe não saia da janela e rezava para que nada acontecesse ao meu pai.
Hoje eu entendo o que era essa época de repressão mas na minha lembrança infantil ficava 
um misto de medo e de algo ruim e ameaçador.
Acho que não podia medir a dimensão dos acontecimentos mas ficava um gosto de apreensão.
Nunca soube os resultados finais mas ver meu pai em casa ao final de cada dia  tranquilizava 
a minha alma infantil .
Havia também um lado escuro da reminiscência. Eram as madrugadas em que minha mãe,
apavorada, nos enrolava embaixo de seus braços para nos proteger de algo trágico.
Meu pai era um homem que não levava desaforo para casa. Era briguento e para ajudar exagerava na bebida  Gostava de cerveja, conhaque e whisky. Às vezes, depois do trabalho, ele ia aos bares com os amigos ou com o pessoal da fábrica e ficava bêbado. Ele não dava notícias e minha mãe se apavorava pensando o pior. Lembro especialmente de uma noite que ele entrou em casa  falando pastosamente em busca de faca ou alguma arma branca pois queria matar "fulano" pois aquilo não era correto , etc.... Eram discussões nos bares provavelmente em função de algo tolo.
Só lembro de minha mãe escondendo todas as facas da cozinha, embrulhadas em toalhas de mesa 
e escondidas em algum lugar fora do alcance dele .
Minha mãe nos tirou da cama e nos levou para atrás do sofá da sala, tapando nossas bocas 
para não fazermos barulho.
De repente, meu pai abre a porta da sala falando alto e dizendo : "Eu mato , eu mato.... " enquanto vasculhava  as gavetas da cozinha em busca de facas. Neste meio tempo, minha mãe saiu detrás 
do sofá e passou os trincos na porta, escondendo as chaves.
Quando ele voltou para sair eu só ouvia ele dizer : "Ladinir .... abra aqui - abra aqui ... ". 
Minha mãe se colocou entre a porta e ele dizendo muitas coisas enquanto nós permanecíamos agachadas atrás do sofá.
Depois de muita conversa ela conseguia driblar a situação e levá-lo ao quarto e ela se recolhia junto com a gente em nossas camas.
Outras situações se repetiam durante as viagens de pescaria, onde ele bebia muito e acabava dormindo no meio do mato ou no carro .
Sei e sentia que minha mãe tinha um grande desgosto com relação a isto. Era uma situação não muito explícita mas que ficava um gosto amargo de sofrimento no ar .
Algumas cenas permanecem vivas na memória sem entendimento completo mas que hoje, refletindo sobre isto, posso chegar a algumas conclusões, confesso que sem muitas certezas, mas posso ler na memória situações e imagens que me marcaram de alguma forma.
Isto não tira o mérito de meu pai. Posso afirmar com segurança que hoje sou o que sou pelos preceitos que me foram introjetados neste curto período de minha existência. Os valores, os conceitos morais,
a justiça e a visão de mundo que me foram ensinados.
Apesar da figura austera de meu pai, do respeito e dos medos que ele imprimia, das palmadas,
dos croques na cabeça, da palmatória de couro que ele havia feito para nos intimidar,
sei que valeram a pena para construir a pessoa que sou.