domingo, 22 de janeiro de 2017

Como era meu pai. Parte III

Nunca soube da real estória sobre a família de meu pai. Isto era relatado pela minha mãe e algumas pessoas da família. Talvez minha mãe criticasse estes atos pois passávamos necessidades para que ele pudesse arcar com tudo isto.
Meu pai era um homem que tinha muitos conhecimentos mas também era reservado e tinha um lado desconhecido, com mistérios velados e não revelados sobre seu passado e sua família. Pouco sei sobre meus avós e tios distantes. Só tinha contato com os que moravam em São Paulo e no interior.
Não sei exatamente quando meus avós chegaram da Itália, se meu avô veio primeiro e depois minha vó. Sei que eram da Região do Veneto. Que eles se casaram em Cremona e vieram ara o Brasil.
Mas detalhes desconheço ....
Alguns episódios marcam bem a minha memória.
Lembro que em 1962 ou 1963 muitas greves aconteciam no país. Ia para a escola em meio a carros 
do exército cercando as ruas do Cambuci. Era um bairro fabril e muitas indústrias se localizavam 
na região.
A perua do Cardeal era parada e só depois de revistada podíamos descer até nossa casa .
Lembro da greve dos metalúrgicos e minha mãe apavorada dentro de casa pois meu pai estava 
na porta da fábrica sendo ameaçado com faca por quebrar o piquete em frente aos portões da fábrica.
Minha mãe não saia da janela e rezava para que nada acontecesse ao meu pai.
Hoje eu entendo o que era essa época de repressão mas na minha lembrança infantil ficava 
um misto de medo e de algo ruim e ameaçador.
Acho que não podia medir a dimensão dos acontecimentos mas ficava um gosto de apreensão.
Nunca soube os resultados finais mas ver meu pai em casa ao final de cada dia  tranquilizava 
a minha alma infantil .
Havia também um lado escuro da reminiscência. Eram as madrugadas em que minha mãe,
apavorada, nos enrolava embaixo de seus braços para nos proteger de algo trágico.
Meu pai era um homem que não levava desaforo para casa. Era briguento e para ajudar exagerava na bebida  Gostava de cerveja, conhaque e whisky. Às vezes, depois do trabalho, ele ia aos bares com os amigos ou com o pessoal da fábrica e ficava bêbado. Ele não dava notícias e minha mãe se apavorava pensando o pior. Lembro especialmente de uma noite que ele entrou em casa  falando pastosamente em busca de faca ou alguma arma branca pois queria matar "fulano" pois aquilo não era correto , etc.... Eram discussões nos bares provavelmente em função de algo tolo.
Só lembro de minha mãe escondendo todas as facas da cozinha, embrulhadas em toalhas de mesa 
e escondidas em algum lugar fora do alcance dele .
Minha mãe nos tirou da cama e nos levou para atrás do sofá da sala, tapando nossas bocas 
para não fazermos barulho.
De repente, meu pai abre a porta da sala falando alto e dizendo : "Eu mato , eu mato.... " enquanto vasculhava  as gavetas da cozinha em busca de facas. Neste meio tempo, minha mãe saiu detrás 
do sofá e passou os trincos na porta, escondendo as chaves.
Quando ele voltou para sair eu só ouvia ele dizer : "Ladinir .... abra aqui - abra aqui ... ". 
Minha mãe se colocou entre a porta e ele dizendo muitas coisas enquanto nós permanecíamos agachadas atrás do sofá.
Depois de muita conversa ela conseguia driblar a situação e levá-lo ao quarto e ela se recolhia junto com a gente em nossas camas.
Outras situações se repetiam durante as viagens de pescaria, onde ele bebia muito e acabava dormindo no meio do mato ou no carro .
Sei e sentia que minha mãe tinha um grande desgosto com relação a isto. Era uma situação não muito explícita mas que ficava um gosto amargo de sofrimento no ar .
Algumas cenas permanecem vivas na memória sem entendimento completo mas que hoje, refletindo sobre isto, posso chegar a algumas conclusões, confesso que sem muitas certezas, mas posso ler na memória situações e imagens que me marcaram de alguma forma.
Isto não tira o mérito de meu pai. Posso afirmar com segurança que hoje sou o que sou pelos preceitos que me foram introjetados neste curto período de minha existência. Os valores, os conceitos morais,
a justiça e a visão de mundo que me foram ensinados.
Apesar da figura austera de meu pai, do respeito e dos medos que ele imprimia, das palmadas,
dos croques na cabeça, da palmatória de couro que ele havia feito para nos intimidar,
sei que valeram a pena para construir a pessoa que sou.

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