sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Mais reminiscências: o sequestro do vovô japonês.

Por genética  ou por desafios do espírito aventureiro, Cibéle e eu tínhamos nossos momentos de ousadia. 

De vez em quando minha mãe ia a um salão de cabeleireiros e não me lembro exatamente  se era na nossa rua ou numa travessa da Rua dos Alpes. Mas era uma casinha bem pequena com uma porta grande e 3 degraus na calçada. Era uma família de japoneses onde a filha,   se bem recordo, se chamava Cecília que fazia cabelos, unhas, etc... E tinha seus pais: um velhinho que beirava os 80 anos e a esposa também idosa que oferecia aos fregueses, além do cafezinho, comidas estranhas do Japão mas que para nosso paladar infantil eram gostosas e diferentes. Ela sempre nos dava umas perninhas compridas de polvo  salgadas e defumadas, tiradas de um saquinho verde. Lembro que ficávamos horas chupando aquelas pernas borrachudas, cheia de ventosinhas mas que eram delícias. Outras vezes eram uns salgadinhos estranhos, escuros, talvez fossem algas marinhas dessecadas ou minúsculos peixinhos salgados .

Lembro que enquanto minha mãe fazia o cabelo, tínhamos a permissão de ficar sentadas ou vendo um gibi ou algum brinquedo, tipo "mico", jogo de memória ou dados que nos distraia junto com o vovô japonês enquanto Cecília executava o serviço. 

Certo dia, Cibéle e eu, talvez cansadas da espera e da situação enfadonha de brincar e ler sempre os mesmos gibis, resolvemos convidar o vovô japonês para dar umas voltas pelas ruas. O vovô concordou com a gente e sem avisarmos de nossa façanha, pusemos o vovô entre nós,  e cada uma de um lado, de mãos dadas com ele, resolvemos passear. Ele não falava português, só fazia gestos e mímicas com a cabeça e com as mãos concordava ou não com algumas coisas, emitindo sinais incompreendidos por nós. Ele andava com passos muito curtos, mas sempre de mãos dadas em nossa caminhada. Lembro que naquele dia Cibéle e eu estávamos muito felizes, descobrindo recantos do Cambuci em pleno dia de semana pois as fábricas estavam abertas e o movimento era normal . Não sei exatamente por onde andamos mas recordo que fomos longe. Começamos pela Avenida do Estado pois lembro que entramos na loja da Mesbla onde vendiam enormes barcos. Entramos naquele pátio admiradas com aquelas embarcações.


LOJA DA MESBLA NA AV. DO ESTADO 

Depois passamos pelos prédios do IAPI  atravessamos os conjuntos habitacionais onde haviam balanços e gangorras. Ali brincamos um pouco, com o vovô japonês nos observando. Caminhamos mais e passamos pelo Parque Shangai que estava fechado e sem vida mas conseguimos achar um portão semiaberto e passamos por baixo de uma cerca e conseguimos entrar no parque. A sensação foi estranha pois os brinquedos todos estavam parados, a bruxa em sua redoma estava calada, a roda gigante sem movimento e o trem fantasma parado nos trilhos .

Lembro de uma fascinação diferente ao ver por outro ângulo e por outra luz aquele parque abandonado que frequentei muitas vezes à noite, com meus pais, com um movimento mágico e com colorido de luzes enfeitiçantes. Estranhei também a bruxa que me causava tanto terror, agora adormecida e imóvel sem a sua risada característica . 

Saímos de lá e continuamos o passeio . Nestes caminhos íamos colecionando tesouros.   Tudo que achávamos colocávamos nos bolsos e dava algumas coisas para o vovô japonês guardar. Nas portas das fábricas, achávamos parafusos, argolas que serviam de anéis, pedacinhos de panos coloridos, provavelmente refugos de alguma tecelagem, que amarramos nos cabelos e nos punhos do vovô. Não tínhamos a noção das horas, muito menos do tempo que corria . O mais fascinante dos tesouros que recolhemos foram uma stiras brancas de plástico bem fininhas que estavam num tambor de lixo, em frente a uma fábrica que confeccionava cordas para violão. Apenas para elucidar, naquela região tinha uma fábrica de discos ( LPs)  e uma gravadora na Avenida do Estado, quase limite com a Moóca - creio que era a Byington ou Continental- e provavelmente haviam fábricas de instrumentos musicais no entorno. Meu pai já havia nos levado lá para nos mostrar como era fabricado um disco. Tinha uma matriz de metal (que com certeza a Petracco que produzia), com muitos sulcos onde eram gravadas as faixas das músicas e depois esta matriz ia para umas prensas com uma massa preta onde se reproduziam os discos . Lembro bem pois depois de ver o disco pronto eles colavam um selo com um cachorrinho ao lado de um gramofone. Acho que eram os discos da RCA e também com o selo da Continental. 

Voltando aos feixes das tiras brancas , foi o achado mais valioso para nós. Pegamos aquelas tiras como ramalhetes e distribuímos entre nós três quando resolvemos voltar. Naquele momento, sentíamos que estávamos meio perdidas pois não sabíamos o caminho de volta . 

Nessa altura, o vovô japonês já estava cansado e com os passinhos cada vez mais curtos e lentos. Seguíamos andando à esmo, sem acharmos uma referência conhecida, e ele fazendo gestos e mímicas sem entendermos direito o que ele queria nos dizer. 

Continuamos a nossa andança e, de repente, avistamos a padaria do português Hilário e a banca onde meu pai pegava os jornais e comprava nossos gibis. Naquele momento sabíamos que estávamos próximo à casa da Marilene e do Artur e resolvemos achar o prédio onde moravam na rua Luiz Gama e tentar subir. Achamos e tocamos a campainha e a Marilene ficou surpresa a nos ver sozinhos. Ela preparou um lanchinho de café com leite, pão e manteiga que foi saboreado com voracidade e neste meio tempo ela ligou para nossa mãe. Enquanto contávamos as aventuras para Marilene, lembro que minha mãe chegou desesperada com a Cecília e nos dando muitas broncas e xingamentos . 

O vovô japonês também levou bronca da filha e aos trancos e barrancos voltamos todos para casa com nossos tesouros e com muitos beliscões e puxões de orelha . 

A única coisa que lembro com vivacidade nítida na memória é que quando chegamos, após um banho bem tomado, minha mãe nos deitou de bruços na cama, Cibéle e eu, e pegou nossas tiras brancas do tesouro que rapidamente se tornou palmatória nas mãos dela . 

Levamos uma surra no bum bum com o nosso tesouro como se fossem chibatadas em escravos e com discursos desesperados de minha mãe . 

Só depois é que percebemos que nosso passeio começou pela manhã e tinha terminado       ao final do dia pois os apitos das fábricas anunciavam o término das atividades. Seis horas da tarde. Ficamos de castigo por muitos dias. Mais tarde minha mãe relatou a a polvorosa situação que causamos, preocupando todo mundo, a ponto  deles tentarem acionar a polícia  e os bombeiros da vizinhança . 

Nunca mais vimos o vovô japonês e não sabemos até hoje que fim teve esta história. 

Depois de algum tempo, nosso pai nos explicou o que eram aquelas tiras brancas tão encantadoras e que em segundos se transformaram em instrumento de tortura com a palmatória que levamos. Aquelas tiras eram refugos de polipropileno que passavam por  processos de refinamento em máquinas até transformarem-se em cordas de violões e guitarras. 

Acabou-se o encanto e nunca mais repetimos a façanha de nos aventurarmos .

Só sei que ficamos felizes e nos sentimos vitoriosas como gente grande por termos feito tudo sozinhas . 

Isto é crescer !!!!!!


  

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