quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O Salão do Automóvel, da Criança, Fenit e UD.

A Petracco tinha um stand no Salão do Automóvel que se realizava no Pavilhão do Ibirapuera e meu pai e outros diretores tinham que ficar por lá o dia todo até a noite para atender os visitantes . 

Nesta ocasião minha mãe tinha muito trabalho pois preparava quitutes para meu pai levar     no stand. Ela ia na feira e comprava vários maços de cheiro verde, alho e aliche e depois passava no Peg e Pag, comprava litros de azeite e muitos pães Pullman de forma. Eu acho que a fábrica pagava um dinheirinho para estes preparos. Ela passava o dia lavando os maços de cheiro verde e picando tudo muito miudinho. Ela enchia vários potes enormes com alichela e guardava na geladeira. Meu pai levava um pote por dia na feira, com os pães todos cortados. Eles eram divididos entre os diretores que ficavam por lá e também servido aos visitantes. No stand havia uma mesa com vários petiscos e bebidas, servida por garçons e a alichela ficava entre os quitutes.  

Quando meu pai nos levava, Cibéle e eu ficávamos sentadas nos sofás montados atrás de biombos, fechado ao público , onde descansavam  os diretores da Petracco . Ali nos distraíamos  com muitos folhetos que pegávamos de outros expositores após uma volta na feira toda com nosso pai. 

Na parte aberta ao público havia enormes vitrines com placas de automóvel que brilhavam quando batia luz, muitas medalhas, distintivos, placas de estradas, de ruas, chaveiros, troféus e muitos outros artefatos produzidos pela fábrica . 

O melhor disto tudo era que meu pai, como expositor, tinha direito a ingressos de todas as feiras realizadas no Ibirapuera como a FENIT, UD e Salão das Crianças. E ele nos levava a todas elas juntamente com minha mãe . 

Na FENIT tinham todas as novidades das tecelagens e da moda . Era uma profusão de tecidos, aviamentos, moda e desfiles. O que encantava a minha mãe eram os tecidos que não amarrotavam, o tergal, o nylon, o banlon,etc. 

Na UD - Feira de Utilidades Domésticas, havia os lançamentos modernos em eletrodomésticos e muitos utensílios para a casa. Havia aulas de culinária em vários stands    e ganhávamos muitos brindes e livros de receitas .Minha mãe ficava encantada com as novidades como enceradeiras que não faziam barulhos, máquinas para lavar roupas,      ferros de passar que pareciam naves espaciais dos Jetsons e muitas outras coisas para uma casa do futuro ... 



Agora o mais esperado por nós era o Salão das Crianças em outubro, como já descrevi em outro momento do blog. Aquilo para nós era um grande presente para o Dia das Crianças pois além dos mais diversos brindes que recebíamos, tinha shows com palhaços, músicas, brincadeiras . 

Quando aparecia o comercial na TV com a famosa musiquinha : " O esperado salão da criança / A bandinha de música voltou / E o palhaço chamando as crianças / Avisando que    a festa começou / No Ibirapuera tem competição .Tem pra criançada muita diversão",              a gente contava os dias para chegar a data tão esperada . 


As miniaturas que recebíamos de produtos como Maizena, garrafinhas de Coca Cola em    mini engradados, latinhas  de ervilhas, extrato de tomate  junto com mini elefantinhos da Cica, o famoso arroz Brejeiro , etc, eram as que mais  nos fascinavam  pois brincávamos muito em nossa cozinha de brinquedo e colocávamos em  mini carrinhos de supermercados onde Cibéle e eu passávamos horas brincando de casinha .

Hoje avalio como um sonho envolto em brumas de felicidade infantil. Experiências oníricas  de um tempo que não volta mais.




sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Mais reminiscências: o sequestro do vovô japonês.

Por genética  ou por desafios do espírito aventureiro, Cibéle e eu tínhamos nossos momentos de ousadia. 

De vez em quando minha mãe ia a um salão de cabeleireiros e não me lembro exatamente  se era na nossa rua ou numa travessa da Rua dos Alpes. Mas era uma casinha bem pequena com uma porta grande e 3 degraus na calçada. Era uma família de japoneses onde a filha,   se bem recordo, se chamava Cecília que fazia cabelos, unhas, etc... E tinha seus pais: um velhinho que beirava os 80 anos e a esposa também idosa que oferecia aos fregueses, além do cafezinho, comidas estranhas do Japão mas que para nosso paladar infantil eram gostosas e diferentes. Ela sempre nos dava umas perninhas compridas de polvo  salgadas e defumadas, tiradas de um saquinho verde. Lembro que ficávamos horas chupando aquelas pernas borrachudas, cheia de ventosinhas mas que eram delícias. Outras vezes eram uns salgadinhos estranhos, escuros, talvez fossem algas marinhas dessecadas ou minúsculos peixinhos salgados .

Lembro que enquanto minha mãe fazia o cabelo, tínhamos a permissão de ficar sentadas ou vendo um gibi ou algum brinquedo, tipo "mico", jogo de memória ou dados que nos distraia junto com o vovô japonês enquanto Cecília executava o serviço. 

Certo dia, Cibéle e eu, talvez cansadas da espera e da situação enfadonha de brincar e ler sempre os mesmos gibis, resolvemos convidar o vovô japonês para dar umas voltas pelas ruas. O vovô concordou com a gente e sem avisarmos de nossa façanha, pusemos o vovô entre nós,  e cada uma de um lado, de mãos dadas com ele, resolvemos passear. Ele não falava português, só fazia gestos e mímicas com a cabeça e com as mãos concordava ou não com algumas coisas, emitindo sinais incompreendidos por nós. Ele andava com passos muito curtos, mas sempre de mãos dadas em nossa caminhada. Lembro que naquele dia Cibéle e eu estávamos muito felizes, descobrindo recantos do Cambuci em pleno dia de semana pois as fábricas estavam abertas e o movimento era normal . Não sei exatamente por onde andamos mas recordo que fomos longe. Começamos pela Avenida do Estado pois lembro que entramos na loja da Mesbla onde vendiam enormes barcos. Entramos naquele pátio admiradas com aquelas embarcações.


LOJA DA MESBLA NA AV. DO ESTADO 

Depois passamos pelos prédios do IAPI  atravessamos os conjuntos habitacionais onde haviam balanços e gangorras. Ali brincamos um pouco, com o vovô japonês nos observando. Caminhamos mais e passamos pelo Parque Shangai que estava fechado e sem vida mas conseguimos achar um portão semiaberto e passamos por baixo de uma cerca e conseguimos entrar no parque. A sensação foi estranha pois os brinquedos todos estavam parados, a bruxa em sua redoma estava calada, a roda gigante sem movimento e o trem fantasma parado nos trilhos .

Lembro de uma fascinação diferente ao ver por outro ângulo e por outra luz aquele parque abandonado que frequentei muitas vezes à noite, com meus pais, com um movimento mágico e com colorido de luzes enfeitiçantes. Estranhei também a bruxa que me causava tanto terror, agora adormecida e imóvel sem a sua risada característica . 

Saímos de lá e continuamos o passeio . Nestes caminhos íamos colecionando tesouros.   Tudo que achávamos colocávamos nos bolsos e dava algumas coisas para o vovô japonês guardar. Nas portas das fábricas, achávamos parafusos, argolas que serviam de anéis, pedacinhos de panos coloridos, provavelmente refugos de alguma tecelagem, que amarramos nos cabelos e nos punhos do vovô. Não tínhamos a noção das horas, muito menos do tempo que corria . O mais fascinante dos tesouros que recolhemos foram uma stiras brancas de plástico bem fininhas que estavam num tambor de lixo, em frente a uma fábrica que confeccionava cordas para violão. Apenas para elucidar, naquela região tinha uma fábrica de discos ( LPs)  e uma gravadora na Avenida do Estado, quase limite com a Moóca - creio que era a Byington ou Continental- e provavelmente haviam fábricas de instrumentos musicais no entorno. Meu pai já havia nos levado lá para nos mostrar como era fabricado um disco. Tinha uma matriz de metal (que com certeza a Petracco que produzia), com muitos sulcos onde eram gravadas as faixas das músicas e depois esta matriz ia para umas prensas com uma massa preta onde se reproduziam os discos . Lembro bem pois depois de ver o disco pronto eles colavam um selo com um cachorrinho ao lado de um gramofone. Acho que eram os discos da RCA e também com o selo da Continental. 

Voltando aos feixes das tiras brancas , foi o achado mais valioso para nós. Pegamos aquelas tiras como ramalhetes e distribuímos entre nós três quando resolvemos voltar. Naquele momento, sentíamos que estávamos meio perdidas pois não sabíamos o caminho de volta . 

Nessa altura, o vovô japonês já estava cansado e com os passinhos cada vez mais curtos e lentos. Seguíamos andando à esmo, sem acharmos uma referência conhecida, e ele fazendo gestos e mímicas sem entendermos direito o que ele queria nos dizer. 

Continuamos a nossa andança e, de repente, avistamos a padaria do português Hilário e a banca onde meu pai pegava os jornais e comprava nossos gibis. Naquele momento sabíamos que estávamos próximo à casa da Marilene e do Artur e resolvemos achar o prédio onde moravam na rua Luiz Gama e tentar subir. Achamos e tocamos a campainha e a Marilene ficou surpresa a nos ver sozinhos. Ela preparou um lanchinho de café com leite, pão e manteiga que foi saboreado com voracidade e neste meio tempo ela ligou para nossa mãe. Enquanto contávamos as aventuras para Marilene, lembro que minha mãe chegou desesperada com a Cecília e nos dando muitas broncas e xingamentos . 

O vovô japonês também levou bronca da filha e aos trancos e barrancos voltamos todos para casa com nossos tesouros e com muitos beliscões e puxões de orelha . 

A única coisa que lembro com vivacidade nítida na memória é que quando chegamos, após um banho bem tomado, minha mãe nos deitou de bruços na cama, Cibéle e eu, e pegou nossas tiras brancas do tesouro que rapidamente se tornou palmatória nas mãos dela . 

Levamos uma surra no bum bum com o nosso tesouro como se fossem chibatadas em escravos e com discursos desesperados de minha mãe . 

Só depois é que percebemos que nosso passeio começou pela manhã e tinha terminado       ao final do dia pois os apitos das fábricas anunciavam o término das atividades. Seis horas da tarde. Ficamos de castigo por muitos dias. Mais tarde minha mãe relatou a a polvorosa situação que causamos, preocupando todo mundo, a ponto  deles tentarem acionar a polícia  e os bombeiros da vizinhança . 

Nunca mais vimos o vovô japonês e não sabemos até hoje que fim teve esta história. 

Depois de algum tempo, nosso pai nos explicou o que eram aquelas tiras brancas tão encantadoras e que em segundos se transformaram em instrumento de tortura com a palmatória que levamos. Aquelas tiras eram refugos de polipropileno que passavam por  processos de refinamento em máquinas até transformarem-se em cordas de violões e guitarras. 

Acabou-se o encanto e nunca mais repetimos a façanha de nos aventurarmos .

Só sei que ficamos felizes e nos sentimos vitoriosas como gente grande por termos feito tudo sozinhas . 

Isto é crescer !!!!!!


  

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Como era minha mãe e o relacionamento com meu pai.


Minha mãe era uma mulher jovem, bonita e elegante.
Bem mais nova que meu pai (15 anos de diferença ) e talvez por isso mais próxima da gente.                      





LOLA - MINHA MÃE 

Ela encobria muitas de nossas travessuras para não chegar ao meu pai .
Pelos seus relatos, ela sofreu muito nos primeiros anos de casamento pois moravam juntos  na casa da tia Thereza e meu pai era extremamente ciumento. Ela casou com 18 anos e com 19 eu havia nascido.
Sei que sofreu muito durante a sua primeira gravidez pois se sentia uma intrusa numa casa que não era dela. 
Conheceu meu pai numa loja no Largo do Cambuci, onde ela trabalhava: a Casa Weigand. Meu pai ia lá comprar parafusos para a fábrica. Ela morava inicialmente com a tia Yayá, Josino, tia Dirce e tia Ninia numa casa perto da rua Ana Neri, pois vieram de Mogi das Cruzes para fazer a vida na cidade grande. 
A Yayá veio primeiro e depois trouxe as irmãs. A Yayá era uma espécie de segunda mãe pois 
era a mais velha dos sete irmãos. Portanto cuidava de todos.
Todos os casamentos saíram da casa dela e o de minha mãe havia saído da Rua José de Queirós Aranha, na Vila Mariana, onde ela e o Josino  haviam comprado o apto . 
Mas logo que minha mãe e meu pai se casaram foram morar na Rua dos Alpes, onde morava a tia Thereza, na casa velha do Cambucí. 
Com o tempo a família de tia Thereza foi morar na Rua Almirante Lobo no Ipiranga e nós acabamos ficando na casa velha que pertencia à fábrica. 
Minha mãe sempre esteve ao nosso lado, cuidava de nossas roupas, bordava nossos vestidos 
e inventava brinquedos e brincadeiras. 
Lembro dos tempos de início da escola, onde ela ía com a gente atrás de matrícula. 
Pegávamos o ônibus elétrico e íamos até o Externato São José , na Liberdade para tentar vaga. 
Acabamos ficando no Cardeal Motta pois nosso pai nos queria uma escola particular e católica . 
Era uma escola exigente e minha mãe ficava às voltas com nosso uniforme. A camisa deveria ser engomada e éramos obrigadas a usar 2 laços de fitas azuis marinho nos cabelos.
 
Cibele e eu esperando o transporte na porta de nosso prédio


Todo dia ela fazia um ovo frito com pão antes de pegarmos a perua e preparava nossa lancheira com 
a garrafinha de Toddy. A lancheira era de couro com um orifício - o receptáculo da garrafinha.
Até hoje tenho em minha memória o cheiro da lancheira. 
Minha mãe sempre inventava um lanchinho diferente pois lembro que o dinheiro era curto. Na hora do recreio onde sentávamos com outras meninas da escola, eu via uma profusão de coisas diferentes saírem das lancheiras vizinhas e a minha sempre era a mais escassa. No lanche das amiguinhas pulavam chocolates, frutas reluzentes e guloseimas diferentes. 
A minha era a garrafinha de Toddy que algumas vezes azedava e coalhava e um pão com ovo.
Às vezes ele vinha recheado com tomate, ovo e queijo, outras vezes com manteiga e uma laranja descascada. Raríssimas vezes tinha uma maçã ou pera . Mas sempre era muito gostoso .
Em épocas de pagamento de salário de meu pai eu recebia "uns dinheirinhos " para poder comprar uns dadinhos na cantina da escola. Lembro que dava para comprar 4 dadinhos e o Chico, dono da cantina, acho que por dó da gente, sempre me dava algo a mais: um pirulito, ou bala ou uma moeda de chocolate. 
Hoje posso perceber que toda a restrição nos gastos e o sacrifício em economizar era para pagar 
a escola que era particular  e talvez tenha sido  isto que provocava esta redução em tudo. 
Na minha visão infantil, nada faltava pois tínhamos comida, casa para morar e escola. A comparação de nossa condição começou a surgir na escola com as coleguinhas.
O início da vida em sociedade começou a estabelecer  a minha visão das diferenças: ricos x pobres; poder x submissão.
Ia nas casas das coleguinhas fazer trabalhos e comecei a entender que o mundo era maior do que minha vida. Não se resumia apenas no nosso apartamento novo . Elas moravam em casas luxuosas no bairro do Ipiranga e na Saúde, com muitos brinquedos,  quartos de princesas que pareciam sair de páginas de revistas. 
Mas meu pai sempre fazia questão de falar e mostrar o outro lado. Sempre dizia para darmos valor ao que tínhamos pois outros nada possuíam. E sempre que nossa comparação infantil aumentava mais ele fazia questão de nos levar a lugares muito pobres para nos mostrar as diferenças . 
E a frase que nos dizia sempre era : não era importante "ter" mas saber "ter" e conservar este "ter ".
E principalmente saber dividir, saber doar, saber repartir e que se na nossa vida tivéssemos isto como lema nada iria nos faltar. 
Realmente eu sentia isso. Embora pouco e controlado, nada nos faltava. Não tínhamos luxo mas tínhamos o essencial. 
Outra coisa que ele sempre dizia :  "Os bens não são importantes e não é isto que faz uma pessoa.
As coisas, dinheiro e materiais se vão facilmente. Podem nos tirar, roubar, mas se estudarem muito 
e se tiverem educação e conhecimento ninguém no mundo vai tirar isso de vocês." 
Ele sempre repetia: "Minhas filhas, eu não tenho nem terei herança para deixar para vocês mas faço questão de lhes dar uma boa escola e ensinar o que sei e o que aprendi na vida pois isto é a melhor herança que posso deixar. Estes bens ninguém vai tirar de vocês . Aprendam tudo que puderem,
só assim é que serão ricas. Não em dinheiro mas em conhecimento " . 
Meu pai tinha muitas habilidades. Ele sabia mexer em coisas elétricas, construía pequenos objetos, arrumava tudo que quebrava em casa, trocava peças, fazia facas de cozinha, panelas e formas para minha mãe com as sucatas das chapas de inox que sobravam na fábrica. Fazia bancos articulados com sobras de madeira, carrinhos, casinhas e até um roda gigante e um escorregador para os hamisters 
da Nicinha, minha prima . 
Além disto tirava ótimas fotos e era apaixonado por fotografias. Foi fotógrafo de corrida de motocicletas. Grande apreciador de música com uma coleção enorme de discos, todos catalogados por gêneros, em grandes álbuns que ele organizava,. Assíduo espectador das óperas e orquestras do Teatro Municipal e que fazia questão de nos levar e de nos explicar o que era cada personagem.
No caso de orquestra, nos explicava a função de cada instrumento. 
Adorava viajar e pescar e cada viagem de final de semana era sem rumo e sem destino. 
Ele abria o mapa de São Paulo, fechava os olhos e apontava o dedo sobre um ponto. Onde o dedo encostasse era o local para a próxima viagem. Conheci várias cidades do interior de São Paulo 
desta forma. Lugares legais e outros embrenhados em mato sem nada para comer ou dormir .
Não havia planejamento prévio. Ás vezes íamos para lugares tão longe e escondidos que não dava para voltar no mesmo dia e ele olhava umas pensões onde dormíamos enrolados em toalhas.
Se fossem cidades históricas ele fazia questão de nos explicar o que aquela cidade representava no contexto do Brasil.
Ele gostava de aventuras, talvez pela sua juventude bem vivida e aproveitada.
Minha mãe, tanto quanto ele, apoiava e gostava desta aventuras . 
Os princípios dele eram bem rígidos, aos moldes da educação arcaica italiana. Mas era um homem bem relacionado, conversador e gostava de brincadeiras, contar piadas e histórias engraçadas que prendia a atenção  de todos a sua volta. 
Adorava corrida de motocicletas, assistia a todos os "bang-bang" da TV Record e gostava de futebol . Era palmeirense roxo e quando eu tinha uns 8 anos e a Cibéle uns 6, nos levou pela primeira vez 
a um estádio de futebol. Foi no Pacaembú, para assistirmos o jogo de Palmeiras X Portuguesa.
Levava ao estádio o seu famoso rádio de pilhas. Quando assistia jogo pela TV ele tirava o som 
do aparelho e acompanhava pelo seu rádio. 
Aos domingos, quando não tínhamos os passeios matinais pelo centro de São Paulo, ficávamos em casa ouvindo os discos que ele colocava na vitrola. Cibéle e eu brincando na sala, sentadas no chão ao lado das caixas acústicas e a Lola preparando nosso almoço de domingo. 
Uma vez por mês, nos passeios pelo centro, onde íamos a pé do Cambuci até a Sé, após a sessão de cinema ele nos levava ao famoso restaurante Papais, onde comíamos massa e tínhamos direito a uma sobremesa e um guaraná, quando liberadas por ele. 
Algumas vezes, antes de entrarmos no restaurante, ele já nos prevenia : " Hoje vamos só almoçar , não peçam sobremesa nem guaraná ". Mas no lanchinho da tarde tinha um bolo que minha mãe fazia para tomarmos com café com leite . 
Apesar do gênio forte de meu pai  minha mãe o apoiava em várias atitudes. Em algumas ela 
o recriminava, mas em outras eu sentia que ela compartilhava e se divertia tanto quanto ele.








sábado, 24 de fevereiro de 2018

As viagens para entregar placas de ruas e automóveis.

Conheço o interior de São Paulo por conta das inúmeras viagens que fazíamos para entregar placas 
e plaquetas de automóveis em várias prefeituras .
Fomos a Santana do Parnaíba, Jundiaí, Louveira, Santos e outras cidades pequenas.
Viajávamos numa Kombi da Petracco, com o adesivo do gatinho preto e o número 7666 que era 
o símbolo da Petracco Nicoli.
Parávamos nas estradas, no Frango Assado e depois das entregas que o meu pai e o Zé motorista faziam, íamos visitar a praça local, o coreto e a igreja matriz .
Numa destas viagens lembro de dois acontecimentos marcantes. 
Uma quando um cavalo entrou na frente da Kombi e a cabeça dele ficou entalada no vidro da frente. Outro evento foi quando a Kombi quebrou e meu pai e eu ficamos parados no acostamento de uma estrada, que penso ser a Anhanguera, enquanto o Zé motorista  oi atrás de socorro.
Foram muitas horas de espera e lembro que meu pai, na tentativa de me distrair, cantava e me contava histórias para que as horas passassem.
Lembro até hoje da musiquinha que ele entoava durante muitas horas e que se repetia por insistência minha entre improvisos de marionetes que ele fazia com tronquinhos de madeira.
Aí vai a letra :
¨Fui certa vez na casa de um japonês.
E o japonês começou ameaçar
E a japonesa pôs a mão em minha mão e disse então:
Taka aí , Taka aí , Taka aí Taká .
Tu mi mandá  Katá , Tu mi mandá Taká, Japão.
Kata i tú Ki tu Ki Tako no chão....¨

Essas e outras estórias permanecem comigo até hoje , bem como os travas línguas.
¨O ninho de maguafaguifa....
Sabia que o sabiá sabia assobiar...
Três tigres tristes......

domingo, 22 de janeiro de 2017

As lembranças de um mundo de luxo.

Nós transitávamos entre aquele mundinho do Cambuci e também num reduto que não nos pertencia.
O Mário Nicoli acabou casando com uma moradora do Cambuci. Era a  Filó, irmã de quem seria futuramente o ministro Delfim Neto.
Eles eram nossos vizinhos. O Delfim andava pelas ruas sempre embrenhado em causas do bairro . 
A Filó, sua irmã, ia na feira com um penteado que parecia um panetone, segundo diziam  os moradores
Sei através de  fofocas do bairro que o Mário,  quando começou a namorá-la, havia pago aulas 
de etiqueta para que ela pudesse ser apresentada à sociedade .
Só sei que quando eu tinha uns 6 anos de idade ( mais ou menos ) nós íamos  na casa do Mário 
e da Filó, já casados , pois meu pai tinha que levar serviços para ele .
Não lembro exatamente onde moravam  mas deveria ser nos Jardins ou Cerqueira César,
em um apartamento luxuoso. Seguindo todas as regras de comportamento ensinadas pelo meu pai, éramos recebidos por um serviçal numa sala muito bonita, cheia de cristais e enfeites.
Mas o que mais me impressionava era pisar num tapete branco muito macio onde eu via meus sapatinhos serem engolidos por aquela maciez. Eles desapareciam em  meio àqueles pelos macios.
De repente, aparecia a Filó com um pote de cristal repleto de bombons coloridos e me oferecia. Segundo as regras de meu pai, só podia pegar um. Ela insistia para pegar mais e, embora a vontade 
era mergulhar com as duas mãos naquele pote reluzente, eu me fazia de educada e recusava.
Mas na hora de ir embora a Filó colocava mais dois ou três bombons em minhas mãos que eram carregados para casa para dividir com minha mãe e minha irmã.
Outras vezes íamos no sítio do Mário em Jundiaí. Se eu não me engano chamava-se Gramadão 
ou Gramado.
Lá havia plantação de figo e uva. Lembro que tinha um trenzinho que nos levava para conhecer 
todos os recantos do sítio e sempre voltávamos de lá com caixas de figo e uvas e nos deliciávamos .
Havia festas neste sítio e lembro bem que numa delas, talvez aniversário da mãe do Mário Nicolli,
eu havia experimentado pela primeira vez na minha vida um ¨sanduichinho¨ de cogumelo.
Aquele sabor estranho em minha boca era indefinido. Lembrava de meus desenhos com casinhas de cogumelos e um vestido que eu tinha com toda a barra aplicada por minha mãe com ¨cogumelos- casinhas ¨pintados de vermelho com bolinhas brancas.
Na minha cabecinha de criança eu estava comendo as casinhas dos duendes e anões que ali habitavam.
Aquele champignon volteava a minha boca com aquele pensamento e sem saber se o gosto era bom ou ruim.
Aquele sítio era meio mágico e ao mesmo tempo inalcançável. Era uma coisa fora do real .
Sei que ali eu tinha que me comportar com todas as recomendações de meu pai e não podia brincar sem a autorização dele . Lembro que tinha um parquinho com gangorras e balanços e muitas árvores e flores. Era bonito.
Havia também as festas dentro da fábrica em que a Filó, o Mário e o futuro ministro Delfim Neto estavam presentes.
Não lembro o que comemoravam mas eram festas formais, com pessoas falando, discursos e placas inaugurais .



À esquerda meu pai, minha irmã e eu .



      
Mario Nicoli, Filomena, minha mãe, minha irmã e eu

Meu pai recebendo condecoração 










Ala de esmaltação da Petracco & Nicoli 
 .



Como era meu pai. Parte IV.

Em nossas viagens para o interior ele procurava nos levar nos recantos pobres para nos mostrar como viviam as pessoas.
Fazia questão de nos levar em asilos de velhinhos, onde ele levava comida, biscoitos e cobertas,
creio que para nos dizer que a vida tinha muitos lados de sofrimentos e sobrevivência.
Levava a gente em lavouras, nas casas de colonos, onde as crianças não tinham leite nas mamadeiras. 
Víamos que eram preparadas misturas de farinha de trigo, água e açúcar para aplacar a fome 
daquela gente.
Meu pai chegou a ser ameaçado em Santa Rita do Passa Quatro quando levávamos mantimentos 
para as famílias de lavradores. O capataz o chamou de lado e pediu que não fizéssemos mais aquilo 
pois iríamos acostumar mal aqueles trabalhadores.
Ele fazia questão de nos mostrar que a vida exigia muito mais do que poderíamos imaginar
 e o que vivíamos era uma vida de luxo diante da pobreza do mundo.
Dávamos valor a tudo que tínhamos e cada conquista era comemorada com muito vigor. 
Sabíamos que tudo era extremamente controlado .
Esta era a visão de mundo que ele nos passava. A vida é um contraste onde tudo convive em seus extremos e isto eu carrego até hoje. Ninguém é melhor que ninguém. Somos todos iguais enquanto 
seres humanos. Temos as mesmas dores, os mesmos sofrimentos, as mesmas emoções, as mesmas doenças e as mesmas alegrias. O que nos molda é a sociedade que nos cerca.
Nossas viagens com a Kombi da Petracco




Como era meu pai. Parte III

Nunca soube da real estória sobre a família de meu pai. Isto era relatado pela minha mãe e algumas pessoas da família. Talvez minha mãe criticasse estes atos pois passávamos necessidades para que ele pudesse arcar com tudo isto.
Meu pai era um homem que tinha muitos conhecimentos mas também era reservado e tinha um lado desconhecido, com mistérios velados e não revelados sobre seu passado e sua família. Pouco sei sobre meus avós e tios distantes. Só tinha contato com os que moravam em São Paulo e no interior.
Não sei exatamente quando meus avós chegaram da Itália, se meu avô veio primeiro e depois minha vó. Sei que eram da Região do Veneto. Que eles se casaram em Cremona e vieram ara o Brasil.
Mas detalhes desconheço ....
Alguns episódios marcam bem a minha memória.
Lembro que em 1962 ou 1963 muitas greves aconteciam no país. Ia para a escola em meio a carros 
do exército cercando as ruas do Cambuci. Era um bairro fabril e muitas indústrias se localizavam 
na região.
A perua do Cardeal era parada e só depois de revistada podíamos descer até nossa casa .
Lembro da greve dos metalúrgicos e minha mãe apavorada dentro de casa pois meu pai estava 
na porta da fábrica sendo ameaçado com faca por quebrar o piquete em frente aos portões da fábrica.
Minha mãe não saia da janela e rezava para que nada acontecesse ao meu pai.
Hoje eu entendo o que era essa época de repressão mas na minha lembrança infantil ficava 
um misto de medo e de algo ruim e ameaçador.
Acho que não podia medir a dimensão dos acontecimentos mas ficava um gosto de apreensão.
Nunca soube os resultados finais mas ver meu pai em casa ao final de cada dia  tranquilizava 
a minha alma infantil .
Havia também um lado escuro da reminiscência. Eram as madrugadas em que minha mãe,
apavorada, nos enrolava embaixo de seus braços para nos proteger de algo trágico.
Meu pai era um homem que não levava desaforo para casa. Era briguento e para ajudar exagerava na bebida  Gostava de cerveja, conhaque e whisky. Às vezes, depois do trabalho, ele ia aos bares com os amigos ou com o pessoal da fábrica e ficava bêbado. Ele não dava notícias e minha mãe se apavorava pensando o pior. Lembro especialmente de uma noite que ele entrou em casa  falando pastosamente em busca de faca ou alguma arma branca pois queria matar "fulano" pois aquilo não era correto , etc.... Eram discussões nos bares provavelmente em função de algo tolo.
Só lembro de minha mãe escondendo todas as facas da cozinha, embrulhadas em toalhas de mesa 
e escondidas em algum lugar fora do alcance dele .
Minha mãe nos tirou da cama e nos levou para atrás do sofá da sala, tapando nossas bocas 
para não fazermos barulho.
De repente, meu pai abre a porta da sala falando alto e dizendo : "Eu mato , eu mato.... " enquanto vasculhava  as gavetas da cozinha em busca de facas. Neste meio tempo, minha mãe saiu detrás 
do sofá e passou os trincos na porta, escondendo as chaves.
Quando ele voltou para sair eu só ouvia ele dizer : "Ladinir .... abra aqui - abra aqui ... ". 
Minha mãe se colocou entre a porta e ele dizendo muitas coisas enquanto nós permanecíamos agachadas atrás do sofá.
Depois de muita conversa ela conseguia driblar a situação e levá-lo ao quarto e ela se recolhia junto com a gente em nossas camas.
Outras situações se repetiam durante as viagens de pescaria, onde ele bebia muito e acabava dormindo no meio do mato ou no carro .
Sei e sentia que minha mãe tinha um grande desgosto com relação a isto. Era uma situação não muito explícita mas que ficava um gosto amargo de sofrimento no ar .
Algumas cenas permanecem vivas na memória sem entendimento completo mas que hoje, refletindo sobre isto, posso chegar a algumas conclusões, confesso que sem muitas certezas, mas posso ler na memória situações e imagens que me marcaram de alguma forma.
Isto não tira o mérito de meu pai. Posso afirmar com segurança que hoje sou o que sou pelos preceitos que me foram introjetados neste curto período de minha existência. Os valores, os conceitos morais,
a justiça e a visão de mundo que me foram ensinados.
Apesar da figura austera de meu pai, do respeito e dos medos que ele imprimia, das palmadas,
dos croques na cabeça, da palmatória de couro que ele havia feito para nos intimidar,
sei que valeram a pena para construir a pessoa que sou.